A literatura de Zelda (final)

Zelda tinha um senso de delicadeza que só poderia produzir alguma forma de loucura
01/12/2013

Prosseguindo: Zelda tinha um senso de delicadeza que só poderia produzir alguma forma de loucura, em menos ou mais tempo:

Em Paris, antes de eu me dar conta de que estava doente, havia um novo significado em tudo: estações e ruas, fachadas de prédios as cores eram infinitas, eram parte do ar, não confinadas pelas linhas que as cingiam, e as linhas estavam livres das massas que seguravam. Havia uma música que tamborilava atrás da testa e uma outra música que me caía do estômago do alto de uma parábola, e tinha também um pouco de Schumann, sereno e terno, e a tristeza das mazurcas de Chopin.

E Scott não ajudava — uma vez que não se pode duvidar desta seqüência anotada na mesma carta, com isenção total (e atonal), pela mão paradoxalmente segura de Zelda “doente” e internada na clínica suíça de árvores serenas demais para os seus nervos:

Mudamos para a Rua 59. Brigamos, você arrebentou a porta do banheiro e machucou meu olho. Íamos tanto ao teatro que você deduziu as entradas do imposto de renda. Bebíamos o tempo todo e no fim fomos para a França porque havia sempre gente demais em casa.

Havia mesmo. Eles fingiam gostar daquilo, embora fosse o pior caminho para os dois, perdidos entre vozes e copos, carros arrancando e o som macio da falsa intimidade, quando a noite caía e ficavam mais sentimentais a respeito das tardes de suas vidas (uma sensação de melancolia antecipada, uma saudade do que, em parte, ainda estava acontecendo enquanto viviam algo e se despediam, no íntimo, daquilo que ainda estavam vivendo):

Na rue Vaugirard, você continuava a viver bêbado o tempo inteiro. Não trabalhava e voltava à noite carregado por motoristas de táxi, quando voltava. Dizia que a culpa era minha, por dançar com a Egorova. Mas eu não conseguia andar na rua, a não ser que tivesse ido à aula. Você não me queria. Entrou em meu quarto uma única vez, durante todo o verão, mas eu não me importava porque ia à praia de manhã, tinha minhas aulas de tarde e, à noite, eu caminhava. Depois, fomos à África e quando voltamos comecei a perceber, porque sentia o que estava acontecendo pela reação dos outros. No fim, eu acabei dançando sozinha…

Talvez agora se possa fazer o longo silêncio devido à infelicidade de vocês, à solidão dos dois, ao talento de Scott desperdiçado depois de 1925 — com a década perdida, o tempo e o esforço para produzir o romance falhado (a narrativa meio palavrosa, nervosa demais e partindo em pelo menos três direções que é Tender is the night).

Com a infinita delicadeza — não desprovida da sinceridade desconcertante dos loucos — dos “emocionalmente instáveis”, suas anotações nas cartas estão começando a dar a perceber (meu deus, quanto cuidado!) a inocência que se insinua entre palavras francas, sexo destampado e litros e mais litros de garrafas idem-idem…

Ah, Zelda, você era capaz de descobrir a América!: “Não faz muito comecei a perceber que sexo e sentimento têm bem pouco a ver um com o outro”.

E, tardiamente, sabedoria obscura: “Não importa o que aconteça, no fundo do coração ainda sei que este é um jogo sujo, perverso; que o amor é amargo e é tudo que há, e que o resto é para os mendigos emocionais deste mundo e equivalem mais ou menos àquela gente que se excita com postais indecentes”.

Era tarde. Sabedoria não ajuda quando chega depois de muita mágoa em quartos fechados para a delicadeza tardia. E quanto à sabedoria, bem, ninguém se importa muito com sabedoria — quando não tem mais nada a fazer com ela, senão anotá-la (em qualquer quantidade e seja sobre o que for). Sabedoria, enfim, já não podia salvá-la, nem ajudar a salvar Scott daquela “deslocação” de ambos, num mundo mudado demais, sem que houvessem percebido quando se dera exatamente a mudança, a alteração ocorrida como na trajetória de algum floco de neve da desgraça, até aquela última — quando ele tombou, arrastando os falsos galhos da árvore de natal plantada no meio da sala da “rainha das fofocas de Hollywood”, no dia 21 de dezembro de 1940, ainda sob o choque, talvez, da queda daquela França encastelada nos dourado anos da sua juventude.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho