A literatura de Zelda (2)

Rapazes. Moças enluaradas, lendo uma carta. A morte deixara de ser algo distante, que só atingia a avó dos vizinhos
01/11/2013

É claro que você foi uma virgem desacreditada nas rodas de moças de braços ásperos e pernas perfumadas e roliças do excesso de carne (por entregar aos meninos viajando para morrer nos campos de batalha estrangeiros, não ansiosos por isso, porém de olhos abertos para a morte como o piloto irlandês de Yeats)…

Rapazes. Moças enluaradas, lendo uma carta. A morte deixara de ser algo distante, que só atingia a avó dos vizinhos.

Entretanto, eu estava falando de você. De uma moça — anos depois — capaz de pedir, por carta: “Você precisa vir me ver e me contar como eu era”.

Qual louca seria capaz de escrever sobre a loucura, depois que ele a visitou (para apagar um pouco a impressão das primeiras cartas)?

Você escreveu, moça dos olhos do fundo do mar pintado num quarto: “Eu tinha esquecido como é estar viva, com a inteligência funcionando”…

O lamento de uma consciência prestes a se perder na luz de outras tardes ou, quem sabe, “nas noites de veludo”: “Nunca fui capaz de decidir se a noite é uma inimiga decidida ou uma grande protetora”.

Você não temia nada nem ninguém, moça dos olhos do fundo de veludo do quarto da noite que emerge para as praias inventadas, recordadas, lamentadas, perdidas na ilha de separação que levou justamente o seu braço para longe do sol, e a sua barriga achatada para as manhãs distantes da areia colada na pele — pela água salgada, pelas ondas refluídas e impetuosas para os guizos de espuma e salpicos no auge da manhã de conversas dentro do mar, antes do novo banho de doce água dentro da casa de Antibes, tudo embalado pela alegria das crianças de farra nas proximidades do mar.

Juventude era aquilo: um pouco de eternidade antes da morte.

Seu modo arbitrário de selecionar o passado. No quarto de janelas altas acima das cabeças — como você gostava —, os verdes olhos cegos para o que todo mundo via estreitando olhos apagados, quase sem cor diante da fustigação irisada das árvores. O que você podia ver (e recordar que vira) era tão diferente!

Era… Bem, era diferente. Não há como dizer de outro jeito. E ninguém entendia isso, como na vez em que discutiram sobre moral “acompanhando um muro antigo, sob o frescor dos lilases”, e ouvindo alguém assobiar Cuddle up a little closer (que George costumava tocar, quando ficava bêbado e pedia para as moças mostrarem as calcinhas brancas; só as brancas). Num dia de setembro de 1930, a mais longa das suas cartas recordava mais do que as calcinhas da cor requerida pelo maluco:

Houve minha calcinha branca que deixou aparvalhada as colinas de Connecticut e nadamos num bebedouro para pássaros que tinha uma senhora de sandálias. A praia e dezenas de homens, corridas malucas pela Post e viagens a Nova York. À noite, nunca conseguíamos arrumar um quarto num hotel, éramos tão jovens…

Uma lágrima para borrar essa palavra (“jovens”), porém o importante não são as palavras borradas: o essencial é, desde já, deixar claro que você não estava querendo se referir, propriamente, aos assuntos de fofocas, à pândega sexual e coisas desse gênero, pois há aquela frase cortante, escrita pela mão que tentava manter reta a linha de caracteres redondos, infantis e (ainda) confiantes: “Não gostávamos de mulheres e éramos felizes” (Scott, você, os amigos dele e alguns poucos seus, que se tornaram também amigos dele — sem invejá-lo demasiadamente).

Vocês seguiram assim, com a estação tatuada nos olhos, rumo ao Sul, atravessando os “pântanos assombrados da Virgínia, os morros de argila vermelha da Geórgia, os doces leitos dos riachos do Alabama”, animados por uísque de milho ao luar — na “asa de um avião”… Meu deus, recordar pode doer como queimadura com a chaleira fervente de água quase ressecada. Ninguém deveria se espantar com cenas arrancadas do fundo da memória recente que, aos trinta anos, sufocava num quarto da clínica Prangins, todas vindo como trutas empurradas pelas correntes do jovem Hemingway mentindo criativamente sobre pescarias e tudo em geral (para inventar o resto com grande talento, acima da água e debaixo de bombardeios que nunca mancharam de poeira o seu rosto redondo). Mas chega de falar mal de um homem que resolveu se matar com um tiro de espingarda de caça, um pouco depois do auge da Glória — com “G”.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho