A casa de Zéfiro

“O que ele poderia responder sobre uma casa que havia se tornado uma espécie de ruína sob um lixão, numa rua degradada, cheia de mendigos, seringas e excrementos?”
Ilustração: Goeldi
06/01/2014

Queria porque queria reconstruir a casa onde “havia sido feliz”.

Era o que ele acabava de dizer ao arquiteto sentado à sua frente — não menos que o melhor ou, pelo menos, mais celebrado dos profissionais do país, uma instituição da cultura nacional: havia construído a capital aérea, de arcos musicais e linhas puras, saídas do lápis para levantar abstrações concretas e soerguer desenhos sustentados pelo cálculo de um poeta.

A cidade fora arrancada da sua imaginação para aterrissar sobre um nada no meio do planalto central: uma espécie de nave à espera, talvez, do dia de rumar para algum futuro coletivamente menos infeliz…

“Infeliz? A casa na qual o senhor foi infeliz?”

Feliz. A casa onde eu fui feliz.”

“E como era essa casa?”

“Antes, eu precisaria contar como era a mulher que, então, vivia comigo naquela casa clara e escura, grande e pequena — ou talvez muito pequena para uma descendente dos Garcia d’Ávila…”

“O senhor é um fazendeiro-poeta.”

“Eu? Que nada! Poesia não serve para coisa alguma, que eu saiba…”

“Está servindo para o senhor tentar descrever uma mulher que amou.”

“Ah, isso eu amei! — e amo. Ainda, espero…”

O arquiteto interrompeu:

“A poesia é o amor, é uma cidade, é uma infância que volta no gosto de um doce.”

“Não gosto de doces. Gostei de poucas coisas na vida, e dessa mulher eu gostei mais do que tudo.”

“Devo supor que era bela”, o arquiteto arriscou a lisonja.

“Não, não era bela. Ou digamos que não fosse bela no sentido usual da palavra. Era uma mulher de personalidade forte e, talvez, parecida com Elisa Lynch, a ‘Marechala’…”

Quem?”

“A mulher de Solano López, o marechal que reduzimos a pó, em Cerro Corá…”

“Lynch, o senhor disse?”

“Uma irlandesa de cabelo nas ventas, mas uma mulher inesquecível, também…”

“Nunca ouvi falar dela.”

E é tido como um homem culto — ele não pôde deixar de registrar para si mesmo.

“Não importa. A minha Eliza chamava-se Eloá. Eloá Garcia d’Ávila de Zéfiro. Nome que não lhe fazia justiça, nem se parecia com ela.”

Teve a impressão de acender-se o olhar cinzento? Algo a se agitar lá dentro, fio de cimitarra de alguma recordação?

Estavam em São José do Egito, aonde trouxera o arquiteto em avião particular, comprado com o dinheiro do fumo de Arapiraca, o lugar de onde arrancara Eloá porta afora da parte reservada de um bordel de coronéis de Sergipe e baianos da Ilhéus do cacau, antes da praga dos anos setenta.

“Como era essa sua casa?”, a pergunta veio, objetiva, sem cimitarras de prata acesas.

“Era uma casa.”

“Sim, mas como era?”

Realmente, como era aquela casa? O que ele poderia responder sobre uma casa que havia se tornado uma espécie de ruína sob um lixão, numa rua degradada, cheia de mendigos, seringas e excrementos? A pobreza havia tomado conta do seu país (nunca da sua conta bancária, por artes mais ilegais do que mágicas, digamos). A pobreza era o destino do mundo. A pobreza era pobre, o mundo só era rico de tristezas, e ele, Zéfiro, fora feliz somente uma vez, naquela temporada de viagens e retornos para a casa que, agora, era impossível recordar como era.

Estava pasmo: não se recordava, não possuía fotos, havia rasgado ou queimado tudo (quando enlouquecera de ciúmes, num mês de agosto sombrio, como são quase todos os agostos brasileiros). Depois, muito depois, havia comprado o lixão de um homem que se tornara proprietário do terreno afundado da Casa da recordação dos anos de emoção…

“O senhor destruiu a casa?”

Estava perplexo. Olhou para ele, meio sem compreender, porém respondendo:

“Talvez eu tenha mandado destruir, sim.”

“E, agora, quer reconstruir em busca do quê?”

“Não sei. Ou sabia, antes de o senhor chegar.”

“Bem, o tal lixão…”

“Virou um lixão. Há muitos lixões nas cidades da pobreza…”

“Nem todos sobre as casas…”

“O senhor acha? É importante que me diga! Há tantos lixões e milhares de pessoas vivem do que pegam lá naqueles monturos do resto daquilo que sobra de quem é menos miserável do que os miseráveis…”

“Não gosto de pensar na miséria.”

“Mas o senhor é um sábio, construiu uma cidade inteira…”

“Construí uma ilusão.”

“O senhor é um homem mais triste do que eu.”

Ficaram ali sentados ainda um longo tempo, contemplando as suas tristezas de modos diferentes. O arquiteto estava ainda mais frio por dentro, porque tinha certeza de que também havia conhecido a mulher — Eloá — sob outro nome, no cerrado do projeto que estava no centro da sua vida. Foi embora com essa impressão. E nem se despediu de Zéfiro.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho