A cabeça no fundo do entulho da leitura (1)

Por que o brasileiro abandonou as poesias de T. S. Eliot para se abraçar ao livreiro de Cabul
Ilustração: Ramon Muniz
01/02/2009

Há menos de trinta anos, a então boa cabeça do leitor brasileiro estava motivando matéria na revista Veja (12/08/1981). O título era Qualidade é sucesso, e o texto — não assinado — assinalava “a volta da literatura de qualidade, com os clássicos nas livrarias e Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar, comemorando um semestre na lista dos mais vendidos no país”.

A famosa lista começou a ser publicada em junho de 1973, com tal impacto que muitas livrarias passaram a exibir cartazes destacando “os mais vendidos da Veja”, nas girândolas da entrada, reunidos atrativamente. A revista semanal da Abril foi quem introduziu aqui o que nos Estados Unidos era uma prática já antiga naquela altura — com a lista do jornal The New York Times na posição de ranking mais influente. Uma curiosidade: exatamente no ano em que a revista brasileira inaugurava a sua lista, o escritor Gore Vidal havia se debruçado, num artigo, sobre as listas do jornal americano (por sinal descobrindo — segundo ele — que a “arte de escrever” estava se transformando na “arte de escrever para o cinema”, etc).

A primeira relação brasileira dos livros mais vendidos da semana, publicada há 35 anos, apresentava um romance de Erico Verissimo — Incidente em Antares —, o estudo A hegemonia dos Estados Unidos, de Celso Furtado, e um ensaio do americano Alvin Toffler (alguém se lembra do futurólogo?) como campeão de vendas: O choque do Futuro. Consultando-se a relação, nos meses subseqüentes, Erico comparece com o primeiro volume de sua autobiografia — Solo de clarineta — e o cinematográfico O exorcista, de William P. Blatty, aparece nas primeiras posições entre os estrangeiros, numa altura em que a revista separava obras nacionais e de fora (embora misturasse ficção com não-ficção).

Pulemos uma meia dúzia de anos, agora, para avançar até a assinalada “glória” das listas literárias dos “mais-mais”, naquele dourado ano de 1981: o leitor brasuca havia levado ao primeiríssimo lugar (ao longo de cinco meses) o já citado Memórias de Adriano — ficção baseada em rigorosas pesquisas da Yourcenar sobre o imperador romano do século 2 (“o século dos últimos homens livres”), segundo a autora belga — e, em seguida, virava assunto da matéria especial de agosto daquele ano por se revelar atraído por qualidade acima de qualquer suspeita: estava lendo o romance Sempreviva — do bom Antonio Callado — e se mostrava também influenciado pelo cinema, ao guindar O beijo da mulher-aranha, de Manuel Puig, às posições de topo nas quais O exorcista já fizera ecoar aqui a tendência observada pelo também roteirista Vidal. Na lista memorável, vinham, em seguida, um livro mais ou menos (Um homem, de Oriana Fallaci, com alguma qualidade pelo menos do “novo jornalismo”, etc.), e O livro dos seres imaginários, de Jorge Luis Borges, na quarta e quinta posições, respectivamente, sendo o argentino um freqüentador ocasional do topo da relação, no tempo daquele país ainda civilizado, literariamente, que foi, até pouco tempo, o Brasil que, em 1981, se mostrava surpreendente mesmo era na “sexta posição” (a confiar na Veja, etc.) de agosto daquele ano: senhores e senhoras, brasileiras e brasileiras, nordestinos e sudestinos, o nosso Pindorama estava lendo — com cinco mil exemplares vendidos em um mês — nada mais nada menos que Poesia, de T. S. Eliot!

Cortázar e Proust
Poeta considerado difícil e requintado, Eliot tivera a primeira edição de uma antologia da Nova Fronteira esgotada no primeiro mês do lançamento no segundo semestre do ano da graça de 1981, o tal cuja dos “livros mais vendidos” prosseguia com a sétima posição ocupada por uma obra do excelente Julio Cortázar — Alguém que anda por aí —, seguida sabem do quê? Outra surpresa: dos sete volumes de Em busca do tempo perdido, a obra-prima de Marcel Proust, esgotada em dois meses!

É tudo verdade, como diria Orson Welles. (Ou, pelo menos, é a verdade de Veja, veja bem).

A se acreditar nela, o que aconteceu, my God, desde então? No país das mesmas 400 livrarias de sempre (o número não muda? Aqui, os dados — recentes — pelo menos da capital pernambucana são: 21 livrarias no Grande Recife, enquanto Buenos Aires são — pasmem — 10 mil (?) pontos de venda de livros (estariam aí incluídas as bancas de jornais?). Porém os recifenses ganham, amplamente, em bares abertos para a falsa boemia de hoje: temos 2,2 mil enquanto na capital argentina são 790). Recomeçando a frase: no país das mesmas 400 livrarias de sempre — já na matéria de 1981, essa é a estimativa referida —, além do Adriano como livro de cabeceira levado até para a praia [nota: a reportagem Qualidade é sucesso mostrava a foto de uma jovem carioca de biquíni, com livro da Yourcenar sobre uma toalha na areia da praia; não parecia uma foto posada, etc.], no país das mesmas 400 livrarias de sempre etc., etc., dava-se, então, o fenômeno dos 190 mil exemplares de Os irmãos Karamázov, de Dostoiévski, vendidos em bancas de revista, na coleção Gênios da Literatura, selecionada com notável apuro.

O que deu errado?
Menos de trinta anos depois, você vai e confere que estamos patinando, nas listas, no pântano dos Paulos Coelhos, esforçamo-nos para alcançar as 100 escovadas antes de ir para a cama (Melissa Panarello), queremos saber Por que os homens fazem sexo e as mulheres fazem amor? (Allan e Barbara Pease), se Tudo valeu a pena (Zibia Gasparetto) para o Homem-cobra e a mulher-polvo (Içami Tiba) e também Quem mexeu no meu queijo? — pergunta transcendental do título da obra de Spencer Johnson (seja lá quem for).

Livros que fortaleçam
Harry Potter e a pedra filosofal já alcançou a marca dos 110 milhões de exemplares vendidos, e é o décimo colocado entre na lista das maiores vendagens de livros de todos os tempos da semana passada — logo depois do Livro dos mórmons e de outros campeões como o Dom Quixote, de Cervantes, o Livro de pensamentos de Mao, o Alcorão e a Bíblia, o supercampeão, com a assinatura do autor mais lido de todos os tempos: Deus (embora Paul Rabbit pretenda desbancá-Lo do ranking, em mais alguns anos, mas isso é outra história). Nestes tempos de pouca fé, as pessoas procuram livros que lhes fortaleçam a crença mais em si próprias do que no Autor de longas barbas. Atendendo a isso, Os segredos da mente milionária, de T. Harv Eker, logrou ocupar a terceira posição, durante meses, nas listas profundamente mudadas de um mundo em que tudo vale a pena, Lya, se a alma for pequena, Transformando o suor em ouro, segundo o também escritor Bernardinho. Sim, estão transformando suor — e outras matérias secretadas pelo nosso corpo — em ouro, nas livrarias atulhadas de “auto-ajuda”. Você tem centenas de opções, incluindo os livros da Luft, a que costuma ter um ataque toda vez em que é chamada — com justeza — de autora de obras de auto-ajuda (que é o que a gaúcha anda escrevendo e defendendo como se fosse literatura).

Porém, a simpática senhora Luft é apenas uma “fantasminha” camarada, ou seja, é fichinha diante dos autores internacionais dedicados ao mesmo mister. Eles escrevem, escrevem e escrevem. Nas recentes listas dos mais vendidos, apareceram alguns títulos bem típicos: Como se tornar um líder servidor, de James Hunter; A lei da atração, de Michael Loster; Por que os homens fazem sexo e as mulheres fazem amor?, de Allan Pease; Quem mexeu no meu queijo?, de Spencer Johnson; A estratégia do oceano azul – como criar novos mercados e tornar a concorrência irrelevante, de W. Chan Kim e Renée Mauborene; Desvendando os segredos da linguagem corporal, de Allan Pease e Barbara Pease; Pai rico, pai pobre, de Robert T. Kiyosaki; Os sete hábitos das pessoas altamente eficazes, de Stephen R. Covey; A ciranda das mulheres sábias e Mulheres que correm com os lobos, ambos de Clarissa Pinkola Estes; As 48 leis do poder, de Robert Greene; Dinheiro: os segredos de quem tem, de Gustav Petrasunas Cerbasi; A física da alma, de Amit Goswami (um detalhe: os escritores de auto-ajuda, brasileiros e estrangeiros, parecem gostar de nomes estranhos; Lya Luft não é tão simples como Maria da Silva, mas é certamente superado por T. Harv Eker, W. Chan Kim, C. Pinkola Estes, G. Petrasuna Cerbasi, Amit Goswami e outras excentricidades talvez escolhidas para fazer supor que a “ajuda” está vindo de extraterrestres disfarçados de autores humanóides)…

Inspirações
Continuando: há outros títulos, nas listas, que revelam a presença maciça do gênero que fez a fortuna de Lair Ribeiro (que, por sinal, desapareceu das últimas listagens). Não posso deixar de ser citado Freakonomics: o lado oculto e inesperado de tudo que nos cerca, de Sthepen Dubner (outro nome duvidoso) e Steven Levitt, além do encolhido O gerente minuto, saído da cachola de certo Kenneth H. Blanchard. Seu conterrâneo Jack Welch — que tem nome de boxeador de Los Angeles — comparece nas listas com Paixão por vencer, na linha da Lya de Perdas e ganhos (será que ela seguiu na trilha de Perdas necessárias, de Judith Viorst, também nas listas das mais vendidas, literalmente?). E três sujeitos batizados com os nomes de Bruce Patton, William L. Ury e Roger Fish, se juntaram para escrever Como chegar do sim à negociação de acordos sem concessões, também muito bem vendido, sempre segundo as listas das revistas.

No topo delas, algo como Adriano durante meses foi substituído pela obra do indefectível Khaled Hosseini (O caçador de pipas), imediatamente seguida por A cidade do sol escrito às pressas para aproveitar a “onda” de Irã, Afeganistão, Iraque, Paquistão e outros países que estão na moda literária, sejam em termos de ficção ou de “reportagem”. De Bagdá, com muito amor, de Jay Kopelman e Melinda Roth, e O livreiro de Cabul, de Arne Seirstad (ao qual se seguiu o autobiográfico Eu sou o livreiro de Cabul, de Shah Muhammad Rais, personagem real de O livreiro), apareceram, indefectivelmente, com as suas comerciais abordagens de antigas culturas que pelo menos a jovem Arne nunca teve o interesse de estudar a sério.

Com presença garantida por mais tempo, Dan Brown freqüentou as primeiras posições de vendagem, com seus códigos davincianos de terceira categoria transformados em best-sellers reforçados pela mídia e pelas versões cinematográficas quase imediatas, na máquina de fazer dinheiro produzindo imitações de Brown — e outros — em série (O segredo, Muito além do Segredo, A conspiração franciscana e outros), neste Brasil das editoras fortemente abraçadas ao lixo do mercado editorial internacional, nos seus variados segmentos.

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Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

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