Você é uma ilha desabitada

Trecho da novela "Você é uma ilha desabitada" de Lourenço Cazarré
01/12/2007

6. A vizio di lussuria fu sí rotta (V-55)

O sargento se foi e o mundo deixou de ser cor-de-laranja.

Sobreveio o silêncio e eu me senti aliviado. Estávamos a sós, eu e a moça do rabo bem desenhado, numa peça minúscula, de paredes brancas.

A cama sobre a qual eu arquejava tomava metade do espaço útil. Estávamos muito próximos, próximos demais. O calor de um corpo ia até o outro corpo.

Fazendo um esforço descomunal, olhei para os meus pés. A pasta estava entre eles.

Acima da cama, havia um pequeno armário, de onde a mocinha tirou um aparelho de barbear e um tubo de espuma. Imaginei que ia me raspar os pêlos pubianos, vulgarmente chamados pentelhos. Senti uma ardência no baixo ventre. Trinta anos antes, quando estava no Exército, eu havia sido operado de varicocele.

No hospital militar, um cabo veado me raspou os pêlos com uma lâmina de barbear cega. Ele foi bastante carinhoso, sua mão era de veludo, mas a lâmina era um arado e eu fiquei em carne viva. No dia seguinte, o talho da operação, ao lado da virilha, doía bem menos que a área raspada.

Já que estamos aqui falando de abobrinhas, vou explicar o que é varicocele. É um inchaço permanente nas veias do saco escrotal. Elas ficam como cobras gordas envolvendo o ovo esquerdo, sempre o esquerdo.

O médico militar me disse que a varicocele geralmente aparece quando o cara leva um bolaço nos culhões durante um jogo de futebol. É uma doença bem brasileira.

As veias que abastecem de sangue o ovo esquerdo são sempre mais largas, porque o sangue vem direto do coração e chega ali com maior pressão. São essas veias que incham quando uma bola de futebol atinge aquela região delicada.

Bem, enquanto a enfermeira se movimentava ao lado da minha cama, com gestos mansos de gata, eu tentava recuperar algumas outras lembranças da época da minha operação de varicocele. Lembrei que o major-cirurgião me mandou passar um mês sem trepar.

— Tu não pode sacolejar essas bolijas, guri — me disse ele.

Tinha sotaque castelhano o filho-da-puta do médico. O Hospital Militar era em Porto Alegre, mas ele na certa tinha vindo de um daqueles milhões de quartéis que nós temos, há séculos, na fronteira com a Argentina.

— Deixa esse peru em paz por um mês, pelo menos. Punheta, nem pensar!

Que dia terrível aquele! Saí da mesa de operação, achando que estava brocha para o resto da vida. Seguiram-se noites de pânico, com direito a suores e tremores. Na terceira noite, tive uma ereção. Na verdade, era apenas uma simples inchação a meio pau, fúnebre. Mas o duro é que eu não podia descascar aquela banana. Ordem médica. Tinha que esperar pacientemente que o ingurgitamento cedesse, não podia recorrer à masturbação.

Pensando bem, tem palavra mais feia? Masturbação é a união de duas palavras terríveis: más e turbação. E significa exatamente isso: más turbações.

Na deprimente enfermaria do hospital militar — imensa, com muitos leitos vagos — as ereções se sucediam, cada vez mais dolorosas, cada vez mais demoradas. Os colhões assumiram vida própria: doíam mais do que o talho da operação e do que a raspagem dos pentelhos.

Pensei: preciso arranjar um jeito de socar o pilão sem sacudir os bagos. Não foi difícil. Inventei, então, a punheta com a ponta dos dedos. Três dedos bastam: indicador, polegar e médio. Mão bem afastada da região dolorosa. Movimentos suaves. Roçar apenas. Fui vitorioso já na primeira tentativa, afinal, eu estava com um atraso de uma semana. A segunda execução consumiu mais tempo, mas valeu a pena. Foi um prazer mais intenso.

Dias depois descobri que naquela enfermaria tinha um outro soldado operado de varicocele que estava também desenvolvendo técnica semelhante. Trocamos informações íntimas. Mas ele era de Bagé, muito balaqueiro, e se jactou de ter inventado a punheta de dois dedos. Indicador e polegar. Cheguei a utilizar o método inventado por ele e, contrariado, percebi que era quase tão eficiente quanto o meu.

De repente, a enfermeira me trouxe de volta a este mundo:

— Barriga pra cima! — comandou ela.

— Não dá pra ficar de lado?

— Não!

Era uma mulher de poucas palavras. Gosto de gente de poucas palavras. O mundo tem sons em demasia. Mesmo que cortássemos a língua de metade de todas as pessoas que vegetam sobre a face da terra ainda assim o barulho seria insuportável. Vendedores. Devíamos, pelo menos, decepar as cordas vocais dos que vendem, anunciando seus produtos aos berros, nas ruas.

Deitei de barriga para cima. Não pude verificar se minha ereção ainda estava visível porque, preciso confessar, meu pau está além-fronteira, está do outro lado da barriga. Convenhamos, é a barriga de um sujeito de cento e dez quilos.

Centrei meu olhar na atendente e nada mais vi do que uma impenetrável máscara profissional.

Então, os dedos dela, ágeis e mornos, começaram a desabotoar minha camisa. Nada nos dá mais plenamente a sensação de sacanagem do que uma mulher abrindo nossa camisa. Mesmo que essa mulher esteja apenas querendo raspar os pêlos em torno dos nossos mamilos para ligar ali uns terminais elétricos.

Tentei me ajeitar melhor. A cama protestou, ringindo alto. Sou neurótico com cadeiras, sofás e camas que ringem. Estou absolutamente convencido de que os móveis foram inventados só para humilhar os gordos. Gemem e estralam. O gordo é desrespeitado até pelos objetos.

— Está doendo muito? — perguntou.

— O quê?

— Seu peito.

— Agora menos — respondi.

20. Seminator di scandalo e di scisma (XXVIII-35)

Digo uma coisa: se um dia você quiser torturar um jornalista, tudo bem, não pegue nem fios elétricos desencapados nem ferros em brasa. Basta sumir com o telefone celular do elemento.

Após a entrada do celular nas nossas vidas, nunca mais tiramos férias, nem folgas. Antigamente, quando deixávamos o jornal e não queríamos ser achados por redatores covardes — os que gostam de checar com o repórter o que já está mais do que comprovado —, bastava ir a qualquer boteco que ficasse fora do circuito noturno do pessoal das redações. Hoje não há escapatória.

Depois do celular, privacidade nunca mais. Nem noturna nem diurna. Hoje só há um caso aceitável de fuga: uma rápida escapada para prevaricar. Férias de quinze dias, um mês? Nunca mais. Hoje em dia, o cara permanece ligado na sua rotina mesmo estando em lugares inóspitos, como, por exemplo, as praias do Rio de Janeiro. Se ocorrer ali, por exemplo, uma chacina, uma guerra entre traficantes, um arrastão ou uma execução sumária, você pode passar os dados diretamente ao jornal, sem tirar os pés da areia suja.

Você já esteve por dentro da mente de um jornalista histérico?

Siga-me.

Na clínica, os minutos não passavam. O mundo parecia estar congelado. Um colunista, quando passa dez minutos sem receber uma ligação, fica nervoso. Sente-se à margem do mundo, fora da engrenagem.

— Por que o senhor não se deita um pouco? — era a enfermeira novamente. — Por que não relaxa?

— Um jornalista garimpa no éter — expliquei. — Pega um telefone e liga pra pessoas que sabem das coisas. Uma delas dá a você uma pista interessante. Então, você dá outros telefonemas e verifica com pessoas espertas se aquilo que o primeiro informante te disse faz sentido. Se não fizer sentido, você arranja um meio de fazer aquele boato parecer verdadeiro. Mas, sem telefone, eu não planto nem colho. Sem celular, eu não existo, entro em desespero. Você me entende?

— Claro — respondeu, desinteressada.

— Não. Você não pode avaliar o horror que é ver as horas se esgotarem sem que a gente consiga cavar uma notícia. Uma só. Para os jornalistas, as horas nada mais são do que uma sucessão interminável de telefonemas. Você me entende?

— Calma! Deite-se, por favor!

— Vou explicar melhor pra você, que é uma mulher sensível. Rastrear a notícia é como levantar a caça. Um telefonema te dá uma pista. Depois, em telefonemas sucessivos, você vai cercando o animal. Um cara experiente como eu consegue perceber claramente quando a notícia vai ficando de pé, acuada por trás da vegetação rasteira. Raramente é um tigre. O que mais se acha é perdiz e cutia: notinhas de sete linhas.

— O senhor quer que eu chame o médico plantonista?

— Não. Sei que divago, mas, isso, no meu caso é a normalidade. Estou sempre assim, a mil. Só que não falo. Escrevo ou telefono. Você entende? Aqui, não, estou de mãos amarradas, algemado, meio doido por não ter um celular. Eu seria capaz de tudo pra recuperar meu telefone — arregalei meus olhos, contraí os dedos. — Até mesmo esgoelar uma mulher.

— Tome jeito! — ela ergueu os punhos fechados, como um boxeador prestes a se defender.

Aquela pose era desanimadora. Olhei para o bíceps dela e constatei que era mais forte do que eu.

— Minha mulher, Luciana, era belíssima aos vinte anos — desabei na cama. — A psicóloga já morava dentro dela, mas não dava o ar de sua graça. Quando Luciana passava pela rua, arrastava atrás de si o olhar dos homens. Tinha um caminhar elegante e, mais importante que isso, um belo traseiro, que ela própria odiava. Não gostava de ouvir o fiu-fiu dos vagabundos.

— Os homens todos são uns cretinos — concordou a enfermeira.

— O que Luciana mais odiava era quando um cara chupava o ar, assim: chuuup!

— O senhor não está com dor de cabeça? — perguntou ela, relaxando a pose boxística.

— Eu tenho uma filha, Edméa, a do meio, que é igual à mãe. Inclusive no traseiro, bem feito. Você sabe o que ela me perguntou um dia? Pai, por que você não arranjou uma profissão decente?

— O quê? — abespinhou-se a enfermeira. — A menina perguntou isso mesmo ao senhor? Falta de respeito!

— Você já teve essa experiência? Algum dos seus filhos já lhe fez pergunta tão violenta quanto essa?

— Deus me livre! Se tivesse um filho, e ele me fizesse uma pergunta dessas, dava-lhe uma surra!

— Naquele dia, minha primeira reação foi achar que ela estava brincando. Mas Edméa não brinca, nunca, jamais. É igual a mãe.

— Tome pelo menos um copo com água, homem de Deus! Eu entendo o senhor, com uma família dessas! Mas sossegue. Essa agitação vai lhe fazer mal ao coração. Vou até o posto de enfermagem pegar um calmante. Mas, se precisar de mim, é só apertar a campainha aí na cabeceira da cama.

— Escute só o final — eu a puxei pelo braço. — Aí, eu perguntei pra ela: por que você fala assim comigo, Déda? Você não sabe que o pai ama o jornalismo? Ela respondeu: pai, que graça você acha em ficar fuçando na lama o dia todo?

A enfermeira pegou-me a mão, carinhosamente:

— Fiz bem em não parir. Filho é como escorpião. Quando fica grande, envenena pai e mãe.

Continuei a narrar:

— Tentei me explicar. Calma, Déda, não é bem assim. Um jornalista econômico só vive preocupado em descobrir quem está roubando de quem. É um serviço de utilidade pública. De quando em quando, alguém vai pra cadeia.

— Raramente — comentou a enfermeira.

— Sabe o que a menina me respondeu? Ela disse assim: pai, você só parte pra cima dos caras que já estão quebrados e acaba com o pouco que eles ainda tentam salvar. Veja só que resposta para uma menina de dezoito anos! Eu retruquei: Não, filhinha, não somos tão poderosos quanto as pessoas imaginam. Eu nem sempre posso publicar o que consigo apurar. Há muita coisa que não pode ser dita. Você deve entender: grandes interesses. Aí, ela me disse: pai, o que você faz é chutar cu de onça morta.

— A sua filha deve ser uma cadelinha — disse a enfermeira e saiu.

28. Gridando: “Perché tieni?” e “Perché burli?” (VII-30).

Eu era uma fábrica de palavras. Sempre fui. Todo santo dia, produzia minha cota diária. Produção elevada em quantidade e qualidade. Sim, eu sou um patrão cruel comigo mesmo. Exijo muito: informação verdadeira, que não possa ser desmentida, e, acima de tudo, estilo escorreito. Sempre reler, no mínimo, cinco vezes cada nota. O erro é diabólico, sabe se esconder. Engana facilmente os preguiçosos, mas um homem atento saberá evitá-lo.

De repente, porém, o mecanismo da minha escrita se quebrou.

O enfarte e a internação cortaram o fluxo das palavras habituais. Eram palavras escolhidas a dedo, exatas para descrever o caos cotidiano da nossa vida de país sem moeda. É preciso ter um estilo apurado para captar as delicadas nuances do perde-e-ganha no embate diário entre uns poucos milhares de ricos e muitos milhões de miseráveis. Os ricos sabem como tirar dinheiro do vento. Os pobres sonham com a escravidão do salário registrado em carteira. Os ricos contratam jovens brilhantes, dão uma mesa e eles e dizem: passe o dia aí, no conforto, pensando em como eu posso ganhar mais dinheiro. Eu escrevia sobre o secreto mecanismo que move o universo: a velha ganância, milenar, eterna. Mas agora estou aqui a escrever abobrinhas que, aparentemente, serão lidas por apenas um leitor: o doutor Tamandaré.

Bem, ainda não sei se entregarei o computador a ele. Vou pensar nesse assunto.

Tamandaré me pediu para ser sincero e eu decidi tentar. Assim, começo dizendo que não me sinto obrigado a tratar o doutor Tamandaré com muita deferência. Afinal, ele age como se fosse meu carcereiro. Mas a verdade é que o doutor parece ser um homem inteligente. Pelo menos tem boa leitura: é fã da minha coluna. Se me lê todos os dias há anos, é certamente um homem bem informado.

Sinto, porém, que meus dedos estão emperrados, meu cérebro está seco e meu coração está travado. O manancial das sinuosas palavras econômicas secou. As minhas fontes não jorram mais informações. É o fim da picada. Estou sendo obrigado a escrever abobrinhas.

Quem sou eu?

Sou um veterano jornalista de economia obrigado a escrever sobre pesadelos. Eu produzia notas jornalísticas antes dos acidentes. O coronário e o de trânsito.

Reconheço que há muitos anos eu vinha descendo a ladeira. Não precisava de combustível. Meu próprio peso me impulsionava. Eu era um caminhão desgovernado. A caçamba estava carregada com palavras. De repente, senti que adernava.

Acidentes assim acontecem com todos os homens. O que varia é a velocidade em que vinham despencando.

Muitas vezes, depois de um tombo desses, você não acorda: está morto. Muitas vezes você acorda e está mais perdido do que antes. Não sabe de onde vinha nem para aonde ia.

Mas você tem que seguir em frente. É só isso que se exige dos homens: que andem, que vão de um lugar para outro. Mesmo quando está preso dentro de uma casa, porque chove forte lá fora, um sujeito tem que ir de um cômodo a outro.

Eu sou o cara sentado no barranco, chorando, ao lado do caminhão de rodas viradas para cima, ainda girando. Uma fumaça cinzenta está saindo do motor. Uma fumacinha preta está saindo da minha cabeça.

Quando era pequeno, li um conto do Barão de Munchäusen sobre um general russo que nunca ficava bêbado embora bebesse pra burro. O segredo dele era simples: desatarrachava o tampo da cabeça para que saísse o vapor da bebida. Eu sou o general russo. Eu sou o barão de Munchäusen.

Por que escrever sobre Dante Verga?

Ninguém quer saber da minha vida. As pessoas só se interessam pelo que escrevo no jornal. Meus leitores querem saber como ganhar dinheiro. Também desejam ser informados com antecedência sobre o banco que vai quebrar. É só isso que tenho para dar a eles. Não preciso que olhem a minha foto no alto da página. Basta que leiam o que escrevo. Se tirassem minha foto e meu nome do alto da coluna eu não estrilaria. Juro. Eu quero é escrever as notas. Ficou claro? O melhor uso que se pode dar às palavras é usá-las como esconderijo. Eu sempre me ocultei por trás das minhas palavras. É isso aí.

O jornal era tudo, a tevê era nada. Os comentários que eu fazia na tevê não tinham espectadores. As pessoas que realmente importam não estão de pé às seis e meia. Pensando bem, nunca uma tevê decente contrataria um sujeito gordo como eu. Tevês gostam de pessoas magras. Mas, numa mesa de bar, meus amigos insistiram que eu aceitasse. Diziam que eu tinha que ser um jornalista moderno, multimídia. O futuro está na imagem, disse um. Os jornais vão desaparecer, acrescentou outro. Pode ser que você acabe na Globo, disse um terceiro. Só se for num programa de culinária, arrematou um gozador.

Insisto nisso: minhas notas são o centro da minha vida. Gosto é de escrever: apliquem aqui, invistam ali. Tudo é dinheiro. O dinheiro move o mundo. O dinheiro faz as pessoas tirarem o traseiro do sofá. Vocês terão muita grana se fizerem o que eu, Dante Verga, estou sugerindo. Eu sou um cara bem informado. Sei como os espertos fazem para ganhar dinheiro fácil. Mas também tenho a lista das empresas que estão prestes a ir para o buraco. Quer bancar o idiota? Jogue na Bovespa. Todos os balanços de empresas brasileiras são maquiados, para enganar a Receita Federal. No Brasil só paga imposto de renda quem não tem renda, quem é assalariado. Tributarista: cara especializado em ganhar muito dinheiro ensinando às empresas como enganar o governo. Está devendo ao governo? Recorra à Justiça: provavelmente você vai morrer antes do julgamento do processo.

Eu sabia tudo. Mas desconhecia que também eu, do mesmo modo que certas empresas, estava prestes a dar com os burros n’água. Minha canoa estava virando. Um barco fazendo água. Eu estava quase comendo capim pela raiz. Quero dizer, todas as frases feitas que eu usava para — jubiloso! — anunciar a quebra de alguma empresa poderiam ter sido utilizadas para descrever o meu próprio declínio.

Todos estamos naufragando. Mas uns poucos virão, como eu, parar num hospital particular, sem macas de agonizantes pelo corredor.

Meu pai dizia: em todas as circunstâncias, sempre, é melhor ter dinheiro. Mesmo na hora da nossa morte, amém. Pobre tem que pechinchar até mesmo na compra de sua derradeira vestimenta, o ataúde.

Eu sou o cara ao lado do caminhão capotado. Eu estou tentando ver para que lado eu estava seguindo, se é que estava seguindo em alguma direção.

41. Che prende il figlio e fugge e non s´arresta (XXIII-40)

Estava eu meio alucinado, batendo furiosamente neste teclado, quando chegou Henriqueta, minha filha mais velha. Parei de batucar. Olhei bem para ela e demorei a reconhecê-la. Eu estava à beira de um ataque dos nervos.

— Pai, estou saindo de casa.

Ali estava ela, parada na moldura da porta, uma jovem alta e corpulenta. Tem um rosto redondo, de bochechas vermelhas, que é idêntico ao de uma prima do meu pai. É uma legítima colona italiana, falta-lhe apenas o lenço amarrado por cima das orelhas.

— O que você disse, Quêta?

— Que estou caindo fora, saindo de casa.

Fechei o computador. Sentei na cama.

— Vamos devagar. Espere que eu desça da nuvem em que me encontro.

— Nuvem carregada, pelo jeito.

Minha filha veste-se mal. Quase sempre anda com um macacão de brim por cima de uma camiseta de malha, ambos folgados de modo a fazerem ela parecer ainda maior do que é. Henriqueta ainda não é tão gorda como eu. Em breve será.

— Você vai sair de casa? Muito bem. Mas pretende fazer o que da sua vida?

— Viver.

Ela é assim mesmo, desesperadora. Raramente alinha mais do que meia dúzia de palavras, mas uma coisa é certa: são sempre palavras contundentes. É sempre agressiva, mas já estou acostumado. É bicho do mato desde pequena. Depois dos quinze anos não me permitiu beijá-la ou abraçá-la.

— Viver de quê, de vento?

— Eu me arranjo.

— Você já tem onde morar?

— Já.

— Onde?

— Na casa de uma amiga.

— Que amiga, porra?

— Que diferença faz?

Estou de pé, diante dela. Tive que caminhar até a porta porque, aparentemente, ela não tinha a intenção de entrar no meu quarto. Henriqueta é um pouco mais baixa do que eu. Tem olhos claros como os meus, mas herdou o olhar implacável de Luciana.

— Já falou disso à sua mãe?

— Já.

— E ela?

— Disse que é contra. Ela sempre diz não.

Henriqueta tem razão. Luciana nunca disse um sim na puta da vida dela, jamais concordou com qualquer idéia ou sugestão minha ou das garotas. Só ela, Luciana, sabe tudo.

— E você, pai, vai dizer o quê?

— Sim. Eu sempre digo sim. Só pra contrariar sua mãe. Só pra contrabalançar as opiniões da casa.

— Por isso vim aqui, pra buscar um sim.

Há muito tempo eu não a olhava de tão perto. Não lembrava que tinha traços tão duros. Não me recordo de tê-la visto sorrir nos últimos anos.

— Veja bem, minha filha. Eu estou aqui nesta clínica, meio que morrendo de enfarte, sem poder trabalhar, talvez às vésperas de perder o meu emprego, e você chega querendo saber o que eu acho da sua decisão de sair de casa. Pra uma pessoa com a sua cara de pau, eu poderia responder sim ou não. Você não quer a minha opinião. Quer a minha cumplicidade pra enfrentar a sua mãe. Eu disse sim, mas não pense que vou pagar todas as suas despesas. Saiu de casa, tem que batalhar grana.

— Tenho o meu trabalho.

— Não me faça rir, Quêta. Desde quando teatro é trabalho em Brasília? Veja bem: nem sei ainda quanto vai me custar este internamento. Não sei se poderei pagá-lo. Não sei nem se vou continuar empregado. Felizmente, até hoje tenho garanti o iogurte diário de vocês três.

— Iogurte de litro, do mais barato.

— Tente compreender o meu drama. Sofri um enfarte no meio da esplanada. Foi socorrido por sujeitos fantasiados de laranjas. O médico daqui me obrigou a teclar bobagens neste computador. Há dias não leio um jornal inteiro. Nem Bíblia tem neste quarto. Pois bem, aí, chega você, minha filha mais velha, que só fala por monossílabos, que está fazendo uma bosta de curso de teatro, que não tem dinheiro nem pra comprar papel higiênico e me diz que vai sair de casa. Por que você não me chutou os bagos, filha?

— Não há partes sensíveis no seu corpo, pai.

Suspirei fundo para me recuperar daquele golpe.

Quando me deparo com um cara presunçoso, dono da verdade, eu penso assim: filho-da-puta, quero que um dia você tenha uma filha igual a minha Quêta, só para ver o que é bom para a tosse.

— Sem drama, pai. Vamos acertar os detalhes.

— Que detalhes você quer acertar, Quêta?

— Grana. Preciso do empurrão inicial.

Se um dia uma pessoa ler essas anotações da minha conversa com Quêta pensará que sou um cara inventivo. Logo eu, que odeio ficção. Desde pequena ela é assim. Eu dizia a Luciana: pense no pior, Quêta vai muito além.

— Filha, o meu pai me dizia que um ser humano só começa a existir quando consegue se sustentar.

— Os tempos mudaram.

— Mudaram? Como assim?

— Vocês destruíram o país. Só deixaram ruínas pra nós. Não há mais empregos. Por isso, vocês têm que nos sustentar.

— Não acredito no que estou ouvindo, Quêta. Desde quando você descobriu que existe um país, e que ele está quebrado? Foi naquela faculdade em que vocês passam o tempo todo dançando, urrando e rolando pelo chão?

— No teatro, trabalhamos a verdade, pai. Quem finge são vocês, os não-atores.

— Voltemos pra questão da grana, Quêta, que é o meu chão. Afinal, sou eu o idiota que bota a maior parte do dinheiro que é queimado na casa em que você vive. Você sabe, por exemplo, o quanto eu gasto só com absorventes e anticoncepcionais para quatro mulheres?

— Três. A mãe já entrou na menopausa.

— Não interessa! — gritei, meio descontrolado. — Sustento a comilança principesca: presunto, iogurtes e sucrilhos. Eu, o trouxa que trabalha dezesseis horas por dia…

— Parabéns, macho provedor.

— Ando pensando em publicar um poema sobre os homens de cinqüenta anos. Vai ter um estribilho: nós só existimos pra pagar impostos e pra sustentar mulheres e filhos ociosos.

— Todo grande predador paga um preço.

— Que história é essa?

— Li no jornal uma matéria que me fez lembrar de você, pai.

— Você lembrou de mim, Quêta?

Comecei a rir. Ri francamente. Aquilo, claro, era uma baita mentira. Jamais, em momento algum, a não ser quando estivesse totalmente sem grana, ela se lembraria de mim.

— Era uma matéria sobre o quê? — perguntei, quando controlei o riso nervoso. — Sobre um pai que tortura as filhas?

— Não. Era sobre o tubarão branco. Ele viaja pelo mundo predando. Acaba com os animais numa praia e vai pra outra. Anda milhares de quilômetros, sempre matando.

— E daí? O que tem a ver a minhoca com o anzol?

— Pai, você veio de longe, do Sul. É grande e branco como o tubarão. Você nos massacra todos os dias com suas ironias cruéis. Você é impiedoso.

— Impiedoso, eu? Você vem ao meu leito de morte e me diz que sou um tubarão branco. E completa dizendo que o impiedoso sou eu. O que é você, Quêta?

— A mais autêntica das suas filhas.

— Voltemos às questões concretas do mundo real. Elas são sempre menos dolorosas. Quanto você quer por mês?

— O suficiente.

— Perfeito! Mais claro que isso é impossível… Mais uma perguntinha, Quêta: você pretende arranjar um emprego?

— Trabalho no grupo de teatro, lembra?

— Claro. Aquilo lá vai lhe garantir o papel higiênico.

— Então, você paga o resto, ora!

— Certo. Só o resto, claro. Você conclui seu curso quando?

— Faltam mais uns três anos, só.

— Mais três? Você está na faculdade há quatro anos, mas ainda faltam mais três. É isso?

— O nosso curso tem muitos créditos.

— Digamos, Quêta, que, de uma hora pra outra, este trouxa que vos fala sucumba, morra, vá pra casa do caralho. Como irá você viver? Malabarismo nos semáforos?

— Nunca tive habilidade manual, pai.

— Não sou um cara calmo. Sou justamente o contrário. Sou pilhado, como vocês dizem. Mas, com você, eu sou manso. Sempre fui. Não contrario você. Dou sempre o braço a torcer. Mas eu acho que hoje você está exagerando. Estamos num hospital. Estou enfartado.

— Aqui, você não está escondido atrás de um jornal.

— Como assim?

— Sem um jornal pra ler, você está tendo que prestar atenção em mim.

— Ok, desisto. Pode dizer à sua mãe que eu concordo com a sua saída de casa. E vou pingar um salário mínimo na sua conta todo mês, enquanto estiver empregado.

— Ainda não falamos do mais importante.

— O quê, tem mais?

Deixei-me desabar de bunda na cama.

— Vou morar com a Thaísa.

— A esquisita?

— Esquisita, por quê? O que há de errado com ela?

— Sei lá. Sempre vestida de preto, com aqueles coturnos…

— Ela é uma pessoa legal, carinhosa.

— Espero que sejam felizes pra sempre.

— Você está debochando, pai? — uma raiva intensa fulgiu nos olhos dela.

— Não. Falei por falar. Foi só uma frase…

— Infeliz.

— Concordo, infeliz.

— Mas verdadeira, no fundo…

— Você está louca, Quêta? Que quer dizer com esse negócio de “verdadeira, no fundo”.

— As historinhas de fadas que você lia para nós acabavam sempre com esta frase: “e viveram felizes pra sempre”. Mas a história estava se referindo sempre a um príncipe e a uma princesa.

— Não estou entendendo onde você quer chegar. Você podia ser direta e clara.

— Não. Há certas coisas que não podem ser ditas abertamente. Nem tudo é jornalismo, pai. Agora, vou indo. Quando você voltar, não estarei mais em casa.

— Quêta, acho que você ainda não tem idade pra sair de casa.

– Mas, naquele tempo, nós éramos uns caipiras, uns imbecis.

— Mamãe casou com dezenove anos.

— Tchau, pai. Cuide-se.

Surpreendentemente, beijou-me. Seria de gratidão pelo fato de eu ter liberado a grana para que fosse morar com sua companheira?

— Quêta, como era mesmo o título da matéria que você leu? A tal que fez você lembrar de mim?

— A longa migração do temível tubarão branco.

* Com a novela Você é uma ilha desabitada, Lourenço Cazarré venceu o I Concurso Literário Cidade de Curitiba, divulgado durante o Curitiba Literária, em novembro.

Cazarré é autor de 40 livros, entre novelas juvenis, livros de contos e romances. Venceu por duas vezes um dos maiores concursos literários do Brasil durante os anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance (em 1982) e contos (em 1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prêmio Jabuti, em 1998. Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães (1993) e o Prêmio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prêmio Açorianos, da Prefeitura de Porto Alegre, por Ilhados, na categoria.

Lourenco Cazarré

É jornalista e escritor.

Rascunho