Virgem sim, graças a deus

Conto de Miguel Sanches Neto
Miguel Sanches Neto: literatura que escraviza.
01/05/2005

Conto em homenagem a Dalton Trevisan

Uma mulher não pode ganhar a vida nessa bendita cidade. Em cada canto um tarado, um louco feroz querendo empalar a gente. Homem para mim jamais quis. Sempre independente e tudo, sabe como é, órfã de pai, filha única da eterna viúva que jurou nunquinha ser de novo judiada por nenhum João.

Que batia nela quando queria fazer as suas safadezas. Dizem que homem ama, mas só na hora e da boca pra fora. Lá dentro, naquele ninho de ratos que é o coração masculino, só quer safadeza. Emporcalhar a gente, se virar e roncar. Mulher sofre demais nesta vida sem graça, por isso não casei. Eu, hein? Tive sim uns namorados. Já nos primeiros encontros, a mão apertando meus peitos. Não senti nada além de dor. Se namorar assim já doía, casamento ia ser um sofrimento só.

A mãe me lembrando de tudo. O marido lá dela chegava de noite, trançando as pernas, ela cansada de trabalhar na quitanda, o dia inteiro na lida. Enrolava rapidamente as bananas no jornal e já estava pesando meio quilo de batata miúda para outra freguesa. E ainda limpava os tomates, um por um, com pano úmido. Fazia isso com as laranjas, com as maçãs. Dava gosto de ver a quitanda quando a mãe tinha saúde e ainda enxergava. Era um asseio só. Depois, de noite, o maldito com cheiro de cachaça e de suor das negas dele, querendo sujar a mãe. Ela dizia que não, cansada demais hoje. Ele insistia, segurava o braço dela, cheio de roxos, e forçava a entrada. Quando mataram o João lá no Bar do Luís, a mãe não achou motivo pra chorar. Enfim livre do grande estuprador, podia cuidar das frutas, verduras e legumes. E de noite assistir novela em paz.

Desde pequena eu enjeitava homem, um nojo que a mãe passou pra mim. Ela também passou a quitanda quando ficou cega por causa da diabete. Faz mais de cinco anos que me viro na quitanda, não dá tempo de limpar as frutas, como a mãe fazia, sabe como é, freguês o dia todo, repor mercadoria, fazer troco, depositar dinheiro no banco, apenas uma menina de ajudante. Homem quase não entra na quitanda, a maioria é freguesa, o que é um alívio. Garrei raiva de homem. Sinto falta não.

Você me pergunta se sou virgem. Virgem sim, graças a Deus. Dessa vontade de sofrer não morro. Não, este nojo não é trauma de namorado. Como já disse, herdei da mãe. O João nunca buliu em mim não, a mãe não deixava o marido sozinho comigo, pois ele era sem-vergonha o bastante para avançar na própria filha, ainda menina sem nenhum atrativo.

— Teu pai não presta — dizia a mãe. — Fuja dele.

Até hoje eu estou fugindo do amaldiçoado. Homem é tudo igual. Em cada homem vejo sempre o João, bigodão malcuidado, cheiro de cigarro, o pigarro, sabe como é, o suor enjoativo.

Quando o japonês parou de entregar as mercadorias da Ceasa, eu fiquei sem fornecedor. Ele sempre tinha feito as entregas. Desde o tempo da mãe. Agora, aposentado. Ele aparecia cedinho, a mulher ajudava a descarregar as caixas da camioneta, eu conversava com a mulher. Não sei, mas no japa pequininho eu não via um homem.

Minha perdição — desgracida de mim! — foi inventar de comprar a Kombi. Para eu mesma buscar as mercadorias. Com grande economia. Ia vender mais barato e aumentar os lucros. A mulher do japonês me apresentaria os fornecedores.

Mas cadê alguém para dirigir a Kombi?

Comprei achando que aprendia logo, fiz umas aulas na auto-escola. Mas aprender mesmo não aprendi, só esfolei a Kombi no portão umas duas vezes. Ela ficou estacionada nos fundos da quitanda, debaixo de um puxadinho coberto de eternit.

O estoque acabando e eu sem ter ninguém pra me socorrer. Liguei pro japonês, ele disse que mandaria um conhecido para servir de motorista. De tão aflita, aceitei na horinha. De tarde, apareceu um rapaz, de nome Antônio. Tímido, cara cheia de espinhas, olhava de lado, como guapeca enjeitado. Uns dez anos mais novo do que eu. Mesmo que irmão, senti na hora. O irmão que nunca tive.

Ele vinha só duas vezes por semana. Terça e sexta. Como morava do outro lado da cidade, chegava de tardinha, me ajudava a arrumar a quitanda, daí dava pra lustrar as maçãs argentinas, como no tempo de minha mãe. Depois ia pra Kombi — ele dormia lá, num colchonete, para no outro dia sair bem cedinho. Antes das sete da manhã, a gente já de volta, ele descarregava a Kombi, ajeitava tudo.

Com o dinheirinho na mão, as três notas, saía assobiando.

À noite, lá na Kombi, eu levava o prato caprichado de comida. Duas coxas imensas de frango ou pedaços gordos de carne de boi. Ele não falava nada, com os olhos no prato mordia com força a carne, rasgando as fibras com seus dentes cariados. Depois de um mês, a gente era que nem família.

A mãe cega em volta da tevê. Agora ouvia os programas, quieta no sofá. As noites em que Antônio passava na Kombi eram esperadas por mim, mas a mãe, coração duro por causa do João dela, fingia não saber do rapaz. Eu, bobinha que sou, deixei ele ficar assistindo tevê em casa. Acompanhava novela e não ligava pro jornal, mais um motivo para gostar dele.

No final da novela dos oito, ele seguia pra Kombi, resmungando um boa-noite.

Eu já pensava em contratar. Carteira assinada e tudo. Ele podia dormir no quintal, construiria mais um puxado nos fundos. Mulher é bicho besta mesmo. Sempre querendo ajudar. Era meu irmão, eu pensava. Irmão que o João não me deu.

No meio da novela, uma noite, uma vizinha me liga, o filho passando mal do estômago, pediu umas folhas de boldo do pé do nosso quintal.

Fui levar o boldo na Soraia, deixei o Antônio cuidando da mãe, e a conversa se alongou. Deu até para tomar uma xícara de café. Não mais do que meia hora de ausência.

De volta, a mãe caída no chão, cheia de sangue entre as pernas, a saia levantada. Chamei os bombeiros, que graças a Deus vieram logo, levaram a mãe pro hospital.

A polícia pegou o criminoso no barraco da Vila Pinto, como não tivesse feito nada. Nem tentou fugir. Dizem que é meio fraco das idéias.

O delegado perguntou: por que fez aquela barbaridade?

— Não sei — ele respondeu.

— O que sentiu na hora?

— Um formigamento aqui — ele respondeu, pondo a mão nas virilhas.

— Mas com uma velha cega?

— A serventia da mulher é o buraco, doutor — ele falou, friamente.

Depois contou todos os detalhes. Não queria fazer nada, até gostava do tempero da nossa comida, tinha engordado três quilos.

Estava vendo novela, a velha no sofá do lado. Ela uma hora se levantou. Foi pro banheiro. A porta do banheiro dá direto na sala. Casinha pequena a nossa, mas tudo muito arrumado e asseado. A mãe tão desacostumada de gente, e o Antônio era o mesmo que ninguém, nem falava nem bulia nas coisas. Ela ficou de porta aberta, abaixou a calça, ergueu a saia e fez xixi. Depois se levantou um pouco e se enxugou. Tudo na frente do espião.

Que correu até ela, ainda saindo do banheiro, tapou a boca com uma mão, empurrou a coitada no tapete e, com a mão livre, ergueu a saia, tirou a calcinha, depois soltou o monstro pela braguilha — o maldito é bem-dotado — e feriu fundo a mãe, que desmaiou de dor. Diz que fez duas vezes, na segunda ela já desacordada.

O delegado perguntou se não tinha vergonha. E ele que não. Velha, cega, mas bem apertadinha. Melhor do que essas meninas de hoje.

A mãe está bem, logo com alta no hospital. Não quero sair de perto dela nunca mais. Por isso estou vendendo a quitanda. Mas junto, a senhora diga pro seu marido, ele tem que comprar a Kombi.

Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

Rascunho