Victoria

Conto de Adriana Lunardi
01/07/2002

Hoje de manhã, enquanto lia o jornal, duas pequenas frases se mexeram em pontos distintos da página com desenvoltura de desenho animado. As linhas, antes presas em sua horizontalidade, começaram a realizar movimentos de onda, perceptíveis apenas pelo contraste que faziam à rigidez dos demais blocos de notícias. Puseram-se a dar volutas rápidas, ligeiramente hipnóticas, e por fim se descolaram por completo do papel. No lugar do texto tatuado em tinta preta, restaram buracos brancos, vazios de informação, enquanto as letras flutuavam livres, dançando soltas a poucos centímetros do meu nariz.

A princípio, julguei estar sofrendo de alucinação. Pisquei os olhos seguidas vezes, atribuindo à vista cansada aquela aberração de leitura. As palavras, indiferentes às minhas desconfianças, provavam estar vivas, libertas da folha branca e dos julgamentos. Seus caracteres miúdos cresciam, até que, num jato violento, vieram se alojar na redoma fina das lentes de meus óculos.

Por um instante, senti-me ameaçado por aquelas letras subitamente rebeldes. Uma reação instintiva fez-me de imediato arrancar os óculos do rosto, sacudindo-os para deles descartar as malditas palavras e depois pisoteá-las, como se faz com formigas. O gesto inusitado, rápido, atraiu o olhar de alguns passantes. Recomposto, avaliei o resultado de minha tentativa e constatei que o texto que se agarrara às lentes efetivamente havia sumido.

Mal esboçava um sorriso, de alívio ou vingança, quando senti meus olhos serem tomados por uma ardência leve, de poeira ferindo a córnea. Levei os dedos às pálpebras, massageando-as para afastar o desconforto. Ao abri-las novamente, vi o corredor de embarque do outro lado dos trilhos, a parede ocre enfeitada por um cartaz de propaganda e três homens esperando. A mesma cena que eu via todas as manhãs, e que vira segundos antes, aparecia agora atravessada pelas longas pernas de um “f”. Deslizei as pupilas para os cantos e a curva de um “o” entrou em foco. As palavras que haviam se despregado do jornal alojavam-se agora sobre minhas retinas.

Fora isso, nada mais me perturbava. Eu estava na estação, como fazia todos os dias, esperando o trem das 8h23 para ir ao centro, onde ganho o pão há mais de três décadas. Seria uma inverdade tentar convencer-me, contudo, de que esse era um dia qualquer. Além do frio que havia congelado o mercúrio dos termômetros durante a madrugada, eu estava completando o meu sexagésimo aniversário. Em uma data como essa é de esperar que não estejamos livres de acontecimentos. Especialmente os de natureza orgânica, que insistem em fazer da vida um fenômeno gratuito, em que se perde o apogeu sem nunca tê-lo sentido. Talvez por isso aquele 13 de fevereiro de 1963, grafado junto ao nome do jornal e de sua data de fundação, tenha escapulido do canto superior da primeira página para ficar gravado em meus olhos, como um filtro a coar, dali para frente, tudo o que me aconteceria.

A outra notícia que se colou em meus olhos era de interesse geral, não o assunto particular de um aniversariante em crise. Trazia a informação de que a poeta Sylvia Plath tinha morrido tragicamente no dia anterior, em sua casa, na Fitzroy Road, 23. Ela estava separada do marido e deixou dois filhos pequenos. Quando escrevem falecimento trágico, os jornais estão varrendo para as entrelinhas a palavra suicídio. Usam a expressão como um eufemismo, não para a morte, mas para o modo de morrer, que repentinamente ganha uma importância peculiar, indizível mesmo para a imprensa liberal.

Eu nunca lera um livro de Sylvia Plath. Conhecia alguns versos dela, ouvidos em um programa da rádio BBC. Era verão, eu estava no jardim, bebendo um gim para espantar o calor. Alguns vaga-lumes pousavam nas poucas plantas da vizinhança e me instalei para vê-los. Gostava de ser surpreendido por aquela luz impossível, vinda de uma combinação química rara em qualquer reino. Fiquei estendido em uma cadeira, ouvindo no rádio os versos que a própria autora recitava. Lembro-me nitidamente de imagens fortes que se enganchavam a outras imagens, também grandiosas, formando uma sucessão de metáforas que terminavam abruptamente, me pondo em conflito com o meu próprio idioma. Não sei se foi o sotaque americano, ou o espírito do álcool que se desprendia a cada gole, mas eu ouvira minha língua de berço de repente transformar-se numa estranha. Repetia-se o mesmo desconforto, a mesma sensação que tive ao parar diante de um quadro de Bosch. Depois de conhecer aquelas paisagens, o mundo começou a parecer um lugar previsível e sem imaginação.

No rádio, a voz da poeta era calma, profunda, e sua respiração emprestava as pausas e os ritmos certos para tornar os poemas claros, mesmo quando herméticos. Foi essa a primeira vez que tive contato com Sylvia Plath. No entanto, aquela breve nota de jornal, subitamente tornada relevante, fugira da página para aninhar-se nas minhas pupilas, íntima como um bilhete de despedida.

A única ressalva que eu podia fazer em relação à repentina importância que essa morte assumira baseava-se em uma coincidência. Por mais que eu despreze toda espécie de sortilégio, não podia me furtar à idéia de que tudo poderia haver se precipitado porque minha mulher também se chama Sylvia. Pouco mais posso dizer com tanta objetividade.

No alto-falante, o chefe da estação avisou que as viagens irão sofrer atrasos por causa da neve que cobre a estrada. É um inverno impiedoso este, o mais frio dos últimos anos. Tive de levantar uma hora mais cedo para varrer o gelo que se acumulara diante da porta bloqueando a saída, e verificar se a água não havia congelado nos canos, o que causaria um desconforto ainda maior. Enquanto isso, minha mulher, Sylvia, preparava a primeira refeição do dia.

Eu me servia de chá quando perguntou a que horas ela deveria tomar o trem para encontrar-me na cidade. É o que fazemos todos os anos no meu aniversário. Uma cerveja em algum pub e depois o jantar no restaurante calculadamente escolhido, com reservas confirmadas. Sugeri que adiássemos desta vez, usando a desculpa do mau tempo e do incômodo que isso traria. Ela parou de mexer os ovos na frigideira e sem mais alarde sentou-se na mesa posta a minha frente. Serviu-se de café e perguntou se eu gostaria de expressar os motivos que me faziam querer desistir de uma comemoração tão oportuna e já arranjada.

Minha mulher vai sempre direto ao ponto. Ela é simples em suas indagações, e mesmo se fossem verdadeiras, as respostas que eu tinha para dar nunca alcançariam tamanha certeza. Um silêncio enovelou-se entre as xícaras e os pratos, errando aqui e ali, até parar diante de mim e não me restar outra iniciativa senão a de quebrá-lo em pequenos cacos de fala, voltando atrás e dizendo que ela estava certa, que não havia razão para desmarcar nosso compromisso. Sylvia deu duas pancadinhas com seus dedos finos sobre minha mão e levantou-se sorridente, dizendo que assim estava perfeito.

A calefação não conseguia dar conta do vento que entrava vigoroso na gare. Olhei para o relógio no teto. O ponteiro deu um pequeno chute e se deteve outra vez. Meus pés estavam aquecidos e minhas mãos também, mesmo assim eu precisava de uma bebida forte. Todos os passageiros devem ter pensado o mesmo. Quase não consegui entrar no café, lotado de homens que, assim como eu, seguravam a maleta e o chapéu nas mãos enluvadas. Pendurei tudo no cabide e tive a chance de conseguir uma banqueta no balcão, abandonada justo no momento em que eu fazia meu pedido. No salão estreito, o clima era eufórico, promovido pelo lazer involuntário que os passageiros gozavam àquela hora da manhã. O garçom encheu um copo de conhaque até a borda e recolheu as moedinhas que eu depositara ao lado. A metade do conteúdo sorvi em um único gole, sentindo o líquido se assentar em meu estômago e distribuir fogo em todas as direções.

Voltei a abrir o jornal, procurando a seção de esportes. O Manchester marcara três a zero, tornando-se o líder do campeonato inglês. Li toda a cobertura do jogo, mais os comentários e as opiniões dos especialistas, espiando por entre a data e a outra notícia gravadas em minha retina. Antes de virar a folha, meus olhos correram a página esquerda, que estampava o necrológio de Sylvia Plath. Breve e incompleto, o resumo daquela vida continha informações perturbadoras. A começar pela idade. A metade do que eu já tinha vivido.

Aquele dado me fez engolir a outra parte do conhaque, que desta vez desceu sem o alarde do primeiro gole. Trinta anos pode ser tarde demais. Eu tinha acabado de voltar da Índia, nesta idade, e a experiência lá adquirida me permitia alçar um posto maior no governo, com um salário suficiente para me casar com Sylvia, a minha Sylvia. Ela era seis anos mais jovem do que eu; tinha planos precisos e uma fé incondicional quanto ao nosso futuro. Talvez eu fosse melancólico demais para ela. Um ser muito embrutecido, incapaz de eternizar aquele sorriso desarmado que ela voltava para mim como se fosse uma garantia, uma certeza de que, no final, tudo daria certo.

Entre suas decisões de esposa, estava a de comemorar meu trigésimo aniversário. Sylvia chegou de surpresa no meu trabalho e me levou a um restaurante, pagando as despesas com suas economias. Não é o mesmo lugar a que iremos hoje. O tempo se encarregou de sofisticar o programa, e juntar a ele mais cadeiras, preenchendo os lapsos de conversa que se tornavam freqüentes ao longo do nosso casamento.

Os meus silêncios. Assim Sylvia batizou a atitude distante que dizia ter surgido em mim, gradualmente. Bastava eu estar distraído e ela delatava os tais silêncios, primeiro com ironia, depois acusando-os de intrusos, ladrões que roubavam frases que deviam ser dela. Sylvia queria saber o porquê do meu progressivo emudecimento. Queria saber o que eu pensava nessas horas. Seus olhos me radiografavam, tentando enxergar através de mim uma mentira, um segredo inconfesso. Tentei minimizar a preocupação de minha mulher, assegurando-a de que não havia nada de errado em ficar divagando mentalmente. Eram coisas que não tinham expressão verbal, nem outra qualquer.

Aos poucos, Sylvia desistiu de me fazer falar, depois deixou de interpretar meus silêncios e, em breve, parecia também ter desistido de mim. Em nossa casa só se ouviam estalidos de madeira, canos de água corrente e pássaros, se cantassem lá fora. A esperança que minha mulher depositava nos gritinhos de crianças correndo pela sala não se concretizou nunca. Ficávamos os dois calados, os olhos pousados em algum livro. A troca de frases, quando havia, era para traduzir desejos simples, como alcançar o açucareiro, ou lembrar de alguma compra a ser feita no dia seguinte. Os anos passaram e o silêncio indecifrado nos alcançou com rugas no rosto e com o peso irremovível que o tempo deposita nos ossos.

No pulso, vejo que se passaram poucos minutos, seis ou sete, desde que sorvi meu primeiro gole. O movimento no café continua intenso. O entra e sai de rostos diferentes faz crer que os atrasos na linha continuam. Desse jeito, não haverá vagões suficientes para todos. O melhor a fazer é voltar para junto dos trilhos e embarcar no primeiro trem que aparecer.

Além dos muitos poemas, relata o jornal, Sylvia Plath deixa dois filhos, uma menina e um menino, ainda pequenos. É fácil imaginar que essas crianças logo irão crescer e alcançar a idade que a mãe tinha quando morreu. Em determinado ponto, serão mais velhos do que ela, e passarão a enxergá-la com olhos de pais, de pessoas que experimentaram as dores e os impulsos a que Sylvia não resistiu, e finalmente a entenderão, apesar de tudo. Penso na minha Sylvia, em mim, e súbito sou grato porque conseguimos sobreviver ao meu silêncio, essa cômoda vaidade de quem nunca pôs nome em nada do que viu, do que sentiu. Minha passagem é rápida e silenciosa. Não deixarei escritos nem filhos, e terei apenas uma curta biografia, menos rica e mais breve ainda que o necrológio de Sylvia Plath. Às vezes, a história pede apenas que estejamos vivos para justificá-la. Eis uma razão para comemorar quando se chega aos sessenta anos e não se está inscrito na eternidade.

O trem encosta na plataforma precedido por lufadas brancas de fumaça. Pelas janelas, vê-se que está lotado. Os passageiros correm, procuram se posicionar à frente, embarcando mal a máquina sossega. Desisto da viagem, começando a exercitar a sabedoria que meus cabelos sexagenários devem honrar.

A estação se esvazia, vivendo novamente de mais uma espera. Chegarei atrasado. A primeira vez em anos de profissão. No final da tarde Sylvia me levará ao salão perolado daquele hotel luxuoso. Quem sabe meus olhos já estejam limpos quando ela me entregar o presente, uma gravata nova ou um sapato que suas mãos levaram a tarde embrulhando e enfeitando com fitas. Ela tentará me entusiasmar, explicando a qualidade do material, chamando a atenção para o acabamento, a exclusividade do modelo. Acostumada a falar de si para si mesma, irá completar o diálogo que me caberia, exibindo uma resignação que encobre anos de estranha resistência. Uma passividade que até hoje eu julgava insidiosa, plena de ódio e acusação, e que agora parece sinalizar o antigo lugar da esperança, essa teimosia infinita por um milagre que pode nunca acontecer. Um desejo tão firme que nem meu comportamento ensimesmado poderia perturbar.

Durante o jantar, talvez conte a ela sobre essa poeta e os versos que escreveu; fale do impacto misterioso que sua morte me causou. Nascerá talvez nosso primeiro assunto, nossa primeira cumplicidade em trinta anos. Irei propor um brinde pela vida eterna, que recém começa para Sylvia Plath. E pelo tempo que me resta para estar com a outra Sylvia, aquela que sorria, garantindo que tudo ia acabar bem. Acho que estou ansioso por isso.

Adriana Lunardi

Estreou na literatura com As meninas da Torre Helsinque, seu primeiro livro de contos. Em 2002, lançou Vésperas, publicado com excelente acolhida em países como França, Portugal, Croácia e Argentina. Corpo estranho, seu primeiro romance (2006), foi finalista do prêmio Zaffari/Bourbon e está sendo traduzido para o francês. A vendedora de fósforos será lançado em agosto pela Rocco.

Rascunho