Vicentina, vidente

Leia os poemas "Primeiro testemunho" e "Segundo testemunho"
Iacyr Anderson Freitas, autor de “Estação das clínicas”
01/04/2008

Primeiro testemunho

Ao tato
são frios, mas nada se compara
ao gelo de quando
nos fixam dentro dos olhos.
Como se nos pedissem
outras vidas outros mundos outras máculas
ou uma nova chance
de morrer. Agora definitivamente.
Ah, por favor, um serviço bem feito. Apenas isso
vos rogamos.

Todavia, ficam neste quarto. Aqui se resume
toda a geografia
da posteridade. Às vezes me assediam me tocam
me arranham, sobem-me pelos cabelos em fúria.
Ao tato, vapores frios.
Quase névoa, um terror quase glacial.
Por isso tranco a porta
e evito
este lado submerso da casa.

É pena que aqui tenham ficado
muitos de meus melhores dias.
Neste quarto, com a voz de Dona Glória ao fundo,
com os bordados de Tia Zilma
e os sete solos de flauta
do maestro Pintado da Silveira, que meu pai
sibilava em sigilo.

Ao tato são tumbas,
mas nada se compara ao gelo
de quando
nos miram
bem dentro da íris
e dizem temos sede e imploram temos fome
e gritam estamos cegos
e choram um choro surdo
de fazer doer
o que nos resta do mundo.
Nada se compara a isso. Então
tranco a porta e isolo este lado
da casa. Tudo inútil, pois eu sei
que sob um céu qualquer
de inverno
ou mesmo no verão mais íngreme,
quando queimam na pele mil janeiros em espiga,
faça chuva ou faça sol, em qualquer postigo
do mapa, entre datas para sempre à deriva dos calendários,
eles estarão sempre aqui, neste quarto,
à espera do que jamais
lhes será confiado.

Segundo testemunho

Tristeza maior não há: ser
esse frio vapor
entre vapores. Olhar de longe
o dia que já não mais nos pertence,
que está agora rompendo a janela
com seu brilho de ouro curvo,
com sua fornalha de cores, a dois metros
de nossas mãos,
mas distando de nós
setenta séculos vezes sete.

Ninguém imagina, ninguém sabe sequer
o que é esse frio
no corpo, o que significa tê-lo em si, ser
esse frio, a essência dele, sem o corpo.
Eu posso afiançar: não há tristeza maior.
Errar entre cegos
à roda do mesmo quarto
até esfolar os pés
que não existem, até sangrar a memória
na distância. Ninguém pode imaginar.

Uma coisa é sentir o corpo
quando tudo em volta é gelo e bruma,
outra coisa é não ter mais corpo,
apenas o frio vapor
que a morte esfuma.

Perder tudo
menos a lembrança
de uma sombra qualquer de quaresmeiras,
de lenhas fumegando, de um cesto
de pão sobre a mesa, da hora breve
de um banho, do beijo trocado
entre vitrais de espera. Perder tudo,
menos a memória da perda,
isso sim é estar além dela mesma:

é estar só, sem
eira nem beira,

só tendo a perda
por companheira.

Iacyr Anderson Freitas

Nasceu em Patrocínio do Muriaé (MG), em 1963. Publicou mais de vinte livros de poesia, os mais recentes: Quaradouro (2007 – semifinalista do Prêmio Portugal Telecom), Viavária (2010 – 1º lugar no Prêmio Literário Nacional do PEN Clube do Brasil), Ar de arestas (2013 – finalista do Prêmio Jabuti e semifinalista do Prêmio Portugal Telecom) e Estação das clínicas (2016).

Rascunho