Não era o Ulisses de Homero, cujo retorno ao lar foi pleno de aventura e emoção, nem o Leopold-Ulisses do Joyce, em intermináveis viagens por sua Dublin. Era o Ulisses da Ilha, a maior viagem que fizera tinha sido de sua casa na Agronômica até o Correio, na Praça XV. No entanto, conhecia praticamente o mundo todo.
Dia sim dia não, pela manhã ou à noitinha, percorria as livrarias e nem necessitava pronunciar a mesma frase, temos novidades?
Toda semana, todo mês, todo ano (durante muitos), o homem se postava primeiro em frente à livraria Anita Garibaldi (a mesma que foi queimada em 1964, durante o golpe militar), esperando que a porta fosse aberta. Visitava, também, com igual regularidade as outras: Moderna, Record, Rosa.
Enquanto ia percorrendo as estantes, não se cansava de repetir a mesma frase. A resposta, em geral, era um sinal negativo com a cabeça, mas o homem não se dava por satisfeito. Retirava da prateleira um livro já examinado à exaustão, ia folheando-o minuciosamente página a página em busca de fotos, ilustrações, gravuras.
Durante os anos 1950, ao contrário dos dias atuais, eram numerosos os jornais, até mesmo em Florianópolis; ele jamais foi visto folheando um único. Sua paixão era, nesta ordem, álbum, livro, revista.
Sabia tudo, quase, a respeito de monumentos, museus, antiguidades, sítios históricos, peculiaridades desta ou daquela região. Discorria sobre Baalbek como se lá tivesse vivido nos tempos áureos ou acabado de chegar indagorinha das ruínas. Falava dos setecentos quartos, das dezenas de salas e salões de Versalhes, dos monumentos inumeráveis que cobriam vastíssimas áreas e de como, para não perder de vista tais fantásticas construções, Luiz XIV, o rei Sol, havia modificado a posição das árvores. Conhecer o Coliseu era fichinha para ele, o mesmo no que se refere ao Partenon, às ruínas Maias, às pirâmides do Egito, à Roma dos papas. Nos fins de semana, em sua casa, abria dois álbuns, debruçava-se sobre o Sena e o Tejo e passava horas viajando por aquelas águas de Paris e de Lisboa. Encostado ao balcão da livraria, discorria com igual sabença sobre as cidades históricas mineiras, os Sete Povos das Missões, o Cristo Redentor.
Embora dominasse apenas o português, nosso Ulisses que jamais saíra de sua Ítaca, talvez nem tivesse atravessado a ponte Hercílio Luz, segundo ele, construída em 1926, o nome uma homenagem a seu idealizador que morrera antes de vê-la concluída, mas vira uma maquete perfeitamente igual; a frase já vai longa, o fundamental é dizer que Ulisses apenas sabia português, contudo, desde que existissem fotos ou gravuras ou ilustrações, ia comprando ou encomendando, mesmo com sacrifício de outros itens, tudo retirado de seu modesto salário de funcionário dos Correios.
Certa ocasião, outro freqüentador assíduo de livrarias, provocou-o: certamente conheces a igreja, o casarão e o aqueduto de São Miguel, ali depois de Biguaçu; a resposta foi a esperada, com um taxativo: claro, tenho tudo isto num livrinho.
De repente, um dia a surpresa, Ulisses se decidira, tinha férias, ia acompanhar um grupo que alugara um ônibus e durante vinte dias viajariam por cidades históricas, a primeira parada em Tiradentes, destino final, Salvador. Nem foi surpresa vê-lo, em menos de uma semana, de novo na Ilha. E logo Ulisses apareceu na livraria com a mesma pergunta de sempre, temos novidades? Sem que lhe perguntassem, foi logo esclarecendo, não dá, não dá mesmo, coisa antiga é pra se ver em álbum, em revista, aí adquire vida por si só, nem há necessidade de legenda. Por isso, em lugar de ir até a Ponte Hercílio Luz, prefiro uma boa fotografia dela. Da mesma forma, de Tiradentes, prefiro, também, ver as esculturas do Aleijadinho nos três álbuns que possuo. E, para se livrar dos gozadores, adotou como lema de vida um velho brocardo português, com duas brevíssimas modificações. Dizia o brocardo: boa romaria faz quem em casa fica em paz. Para ele ficou sendo: boa viagem faz quem em casa vê em paz.