Viagem ao planeta egípcio (final)

O homem de letras, que leciona na Universidade de Asyut, se espanta em que eu insista no interesse pelo faraó que governou o seu país, há três mil e trezentos anos
01/03/2001

— Akhenaton?

O homem de letras, que leciona na Universidade de Asyut, se espanta em que eu insista no interesse pelo faraó que governou o seu país, há três mil e trezentos anos. Ele me olha como se eu falasse de um esquimó dentro da areia congelada que não se desarruma.

Akhenaton — que passa a chamar de Amenófis (talvez para acentuar sua opinião sobre a linhagem de faraós despóticos do qual ele foi herdeiro: ou seja, um rei como outro qualquer) — o faraó e a tal “reforma espiritual” não lhe interessam… são coisas do passado muito remoto, estão fora do foco de atenção do Islamismo… é o que ele pensa e eu o vislumbro no seu olhar mais uma vez penalizado. O fato de eu não ser egípcio — e muçulmano — é um defeito tão grave que ele suspira, outra vez, com o cartão ornamentado do Dr. Saleh na mão:

— Existe um grupo que pesquisou alguma coisa relacionada com outras revelações referidas pelo Corão, mas… eu não poderia lhe dar acesso ao trabalho sem uma solicitação mais formal, digamos, de alguma instituição com a qual a universidade tivesse algum programa de intercâmbio ou troca de informações… E, depois, foi um trabalho feito sob uma perspectiva islâmica, compreende?

Eu compreendo. Compreendo que o escritor muçulmano — ao qual fui apresentado pelo Dr. Saleh — seja mais muçulmano do que escritor, em face do meu interesse “fora de foco”. Eu não sou egípcio nem muçulmano, e o homem agora à minha frente, o atual presidente do sindicato dos professores da universidade, sim, ele é egípcio e é muçulmano, e mais do que isso: é um fundamentalista convicto, que neste momento comemora a ultrapassagem dos 3.000 ativistas islâmicos direta ou indiretamente ligados à instituição na qual se orgulha de ensinar (são os dois assuntos, já vejo, sobre os quais mais gosta de falar, mesmo com um estrangeiro interessado num faraó distante: a Universidade e o Fundamentalismo modernos.)

Tento voltar ao assunto do primeiro rei monoteísta — cujo interesse é menos que mínimo para o professor. Seu inglês não é “de colégio”, raramente passa para o francês em que se diz mais fluente e quase nunca precisando se socorrer do árabe — como a maioria dos outros com que conversei até agora, recorrendo a um intérprete (os fundamentalistas, principalmente, são mais desconfiados: utilizam a língua nacional como o muro das antigas casas, agora que moram em apartamentos com televisão ligada em Hawai 5-0).

“Nunca esteve em Amarna?”.

“Não”, ele balança a cabeça duas vezes — e sorri: “nunca ouvi falar de nada parecido com isso”. Mas talvez revela, agora, um fiapo mínimo de curiosidade pelo caminho do meu “disparate”. Os muçulmanos fundamentalistas costumam encarar o Livro da sua religião como algo tão totalmente exclusivo que não reagem bem, em princípio, ao interesse dos estrangeiros (de qualquer tipo) pelo Corão, que contém todo o passado, o momento presente e o futuro inscrito nas páginas sagradas e diretamente reveladas ao cameleiro analfabeto que escreveu as suas  belas suratas.

— “Mas se o texto sagrado contém todo o passado, porque seria estranho que encontrasse forma de mencionar Akhenaton?”

Não, não — sua mão se ergue num protesto irritado (mesmo que a referência pudesse até confirmar suas palavras sobre o arco do saber contido no Livro).

Sou interrompido:

— “Aonde foi ter, no Corão Sagrado, para pensar em semelhante disparate? Quem aparece, no Livro, que o senhor possa ter pensado…”

Faz um gesto com a mão, impaciente. Está mais quente para mim do que para ele, e propõe que conversemos enquanto cuida de algumas providências de final de expediente, o que irá incluir orações demoradas numa mesquita onde só entrei porque estava com ele — e, ainda assim, não muito bem visto. Depois de todas as minhas demonstrações de paciência (na verdade, vi-o entrar e sair dos lugares mais inesperados, o que mais me divertiu do calor do que fez com que me arrependesse de ter procurado aquele homem que tratam com deferência, sem dúvida), ele muito me surpreende com um convite para ser seu hóspede em Asyut, se eu dispensar os confortos pelos quais nós pagamos caro demais, em hotéis que são menos limpos do que se imagina. Não penso duas vezes: gostaria de ver como vive um fundamentalista culto, e estou cansado, também, dos hotéis com shows de odaliscas gordas dançando para turistas queimados do sol do Egito que esquecerão logo ao entrar, de volta, nas suas casas de Miami.

 

oooOooo

— Mas, diga-me, o que o levou a pensar que Amenófis IV possa estar referido no Livro do Profeta?

Estamos na varanda ampla — que abre para o vazio cor de areia, matizado de azul claro que prepara para o turquesa debaixo das sombras: é uma claridade que faz recuarem as coisas e, ao mesmo tempo, suaviza as distâncias. Mas eu tento ser direto, na resposta, e vou à melhor hipótese encontrada nas belas páginas caligráficas, ornamentadas de arabescos em verde e dourado, do exemplar do Corão — em inglês — que trouxe comigo:

— Para mim, pode ser Akhenaton o “sábio maior do que Moisés”, na Surat Alcahf (Surata da Caverna), alguém que o profeta hebreu está procurando como mestre espiritual, “na confluência dos dois mares” — o que parece seria uma boa descrição corânica do encontro do Mar Mediterrâneo com o Mar Vermelho. Moisés está indo buscar, ali, o conhecimento — segundo a Surat — junto a alguém (“um servo” de Deus) a quem Alah havia agraciado com a “Sua misericórdia” e iluminado com a “Sua ciência”… Um guia cujo perfil combina com o rei monoteísta cuja doutrina certamente influenciou Moisés… E a adequação à figura do mestre espiritual que foi rei, aumenta, na mesma surata, se atentarmos para o que diz Deus sobre o ser estranhamente velado pelas palavras reveladas ao profeta do islamismo: Consolidamos seu poder na terra e lhe proporcionamos a chave de tudo.

“Reconheço as palavras, mas nunca ouvi dizer que… Akhenaton? Não. Akhenaton não poderia ser… Essa passagem se refere a Alexandre”, ele repete, o muçulmano um tanto chocado, a boca desdenhosa. E recita a abertura de Alcahf, a décima oitava surata do livro sagrado da sua religião.

“Eu também conheço a Surata. E pensar num ‘encontro’ de Moisés com Alexandre, por acaso é mais razoável?”

Mas ele está decidido a demonstrar que é mais do que um bom muçulmano: não responde, e recita quase os 110 versículos da surata, no seu árabe musical, os olhos fervorosos talvez incomodados, na verdade, com a minha presença (embora eu tenha sido convidado para lhe dar oportunidade de agradar ao Misericordioso), as minhas idéias e também porque não admirei o bastante, quem sabe, aquela verdadeira relíquia: o jipe.

“Onde está um faraó nestas palavras?”, pergunta, ao terminar. E seus olhos se iluminam: “Você leu o Corão em inglês! Não é a mais a Palavra do Profeta, rigorosamente…” — e aponta um dedo para o exemplar dourado na mesa onde a água tônica me faz pensar em verdadeira bebida. Meu anfitrião está exultante, acaba de descobrir a melhor explicação para o “disparate da minha hipótese” — uma pedrinha entrando no sapato, a toda hora, na terra do Egito. Agora, ele está mais tranqüilo; sorri, de novo, e me olha com piedade, renovada, pelo meu defeito de nascimento (não ser árabe etc.), o qual retarda, gravemente, as minhas chances de descobrir a Verdade do Profeta e não as falsidades de um antigo deus dos tempos dos “adoradores de ídolos”: — Todos eram isso, naquela época: adoradores de cães, de bois, de gatos, de crocodilos… — enumera e simplifica Muhammed abdel-Quddus, com aquela vaidade disfarçada dos muçulmanos, que se sentem realmente os destinatários da Palavra Única, escrita em árabe arcaico e conservada no formol da ortodoxia: duvidar de uma vírgula do Livro significaria desestabilizar a ordem do universo, pôr em perigo as almas (e, no final de contas, uma heresia). Agora ele se convence, alegremente, de que eu estou enganado porque faço parte daquela triste parcela da humanidade que não conhece o Livro na língua em que Deus o revelou a Maomé, e isso o entristece, porque todos deviam entender e falar o árabe, ao menos para evitar que uma língua traiçoeira como o inglês possa levar uma boa pessoa (obrigado, Muhammed) na direção errada… ou, mesmo, a uma completa loucura: procurar por um faraó egípcio adorador de ídolos nos versículos de uma surata…

“Porque não vai procurar na Bíblia? Ali está cheio de faraós!” — é o que ele diz, por fim, satisfeito com a minha ignorância sobre as coisas do Livro Sagrado.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho