Viagem ao planeta egípcio (1)

Na atmosfera falsamente tranqüila dentro de um jato roncando sobre a planície do Nilo, a tripulação e os passageiros (o que procuram, quais negócios calculam?
01/02/2001

Na atmosfera falsamente tranqüila dentro de um jato roncando sobre a planície do Nilo, a tripulação e os passageiros (o que procuram, quais negócios calculam?, quem vão encontrar e por que estão ansiosos de um modo quase  disfarçado — excetuando crianças trazidas pelas mães que pediram travesseiros, leite esquentado, revistas que não lêem?), todos nos preparamos para a aterrissagem.

Uma anasalada voz feminina avisa, em três línguas, sobre ser já visível (“do lado esquerdo…”) a grande Pirâmide — se você encostar o nariz no vidro e conseguir ver o quadrado quase achatado, quatro mil metros abaixo das turbinas que roncam sobre arranha-céus e pontes etc.

Mas, a Pirâmide não é aquilo que você — talvez — deseje ver de cima, de baixo e visível (sempre visível) de quase toda a capital moderna, com “mais de quinze milhões de habitantes e temperatura mínima de 22 e máxima de 33 graus em setembro” — prosseguem informando — enquanto cintos de segurança são atados e se instala aquela leve excitação controlada das aterrissagens em lugares suspensos de um prestígio tal que chega a ser quase chocante que eles existam do modo prosaico como existem as capitais, as cidades vivas sobre cidades mortas, os homens de hoje arrastando-se, lá embaixo, no ordenado tráfego que se espraia em mil direções bordejadas pelo deserto imóvel.

É do outro lado desse deserto que pretendo visitar Amarna.

Visitar Amarna! Nada corresponde menos à expectativa das folhas douradas de sarcófagos e múmias desfazendo-se em tiras. No país de hoje, o Egito de ontem vai se tornando uma espécie de cenário de cartolina pintada, montado numa feira que não tem vínculo espiritual profundo com o país primitivo — e que, por sobre a herança do Islã, quer ser moderno como um shopping a céu aberto entre o Mena House e a fantasia de visitantes saindo do aquário gelado dos hotéis diretamente para alguma pirâmide refrigerada, em monotrilho acima da areia (que entra nos sapatos e fustiga a íris sob os óculos escuros): algum dia, será assim?…

Qualquer interesse ou objetivo fora das imagens-postais parecerá estranho — mesmo para o mais orgulhoso funcionário do ETA (The Egyptian Tourist Authority). Há outros órgãos oficiais, vinculados ao Ministério do Turismo e, naturalmente, todos se empenham em facilitar ao máximo o acesso aos lugares históricos que atraem multidões para Gizeh, Luxor, Karnak, Tebas… mas nada os prepara para um interesse mais profundo no passado do “cenário” visitado pelas hordas rápidas de turistas. (Os números são, de fato, impressionantes — e o Egito se automimetiza, pouco a pouco, no seu próprio artifício.)

Do Mena milionário ao Sakkara Country Club and Hotel (3 estrelas, com breakfast), os egípcios não imaginam que alguém — que não seja um arqueólogo monótono, inclinado a se empoeirar nas “velhas trilhas obstruídas” — queira partir do centro nervoso da capital para ir percorrer umas rasas ruínas sem atrativo, longe de todo o conforto pelo qual vamos nos tornando fervorosamente histéricos — e não só nos paraísos dos folhetos turísticos (onde está dito que nascemos para estar confortáveis e sermos felizes?, pergunta uma canção mais antiga do que você imagina.)

No distante lugar de Amarna se deu um acontecimento marginal da grande história local, que em nada “justifica” deixar a capital alegre, cortada por avenidas que levam a dezenas de boates — todas com nomes dinásticos. O Cairo, repete-se, “é uma das maiores metrópoles do mundo, tem o melhor museu de antiguidades faraônicas”, e está tão próximo das pirâmides que é só estender a mão para um táxi etc… Mas, se o estrangeiro não se contenta com isso, e que ver o país, bem, então ele pode partir, nos vôos domésticos, em jatos confortáveis, para lugares “muito interessantes!”, dirão todos os folhetos, pôsteres e impressos com a máscara de Tutankhamon olhando para o vazio onde sobrevive, mais virtual do que real, debaixo da sua vitrine.

Sorridentes funcionários da agência oficial de turismo oferecerão opções que vão das novas “reconstituições históricas” — simuladas com atores e cenários vivamente pintados — aos roteiros que  demandam, geralmente, a margem oriental do Nilo. É o rumo do Vale onde a necrópole saqueada (por ladrões e por arqueólogos) abafa de calor na temporada alta, sob o sol queimando mesmo nas entradas escuras dos túmulos, entre duas Coca-colas e água mineral — muita água mineral! — que leve na bolsa, não compre na estrada, beba no ônibus e não jogue senão nos recipientes que estão aos pés dos deuses, para recolher o lixo. Caso você ainda não esteja “cansado” de pilones e nichos, de santuários e recessos de templos funerários onde soam cinco línguas de grupos levados por guias e bandeirinhas coloridas… há o roteiro fluvial da Núbia — mais primitiva, porém não menos digna de visita, é claro. É fácil escolher!, e sempre se conta com toda uma corrente de simpático incentivo para conhecer o país cheio, em toda parte, do mesmo artesanato que copia papiros e motivos faraônicos com alegre mau gosto acelerado pela cobiça.

“Mas, Tell el-Amarna?… quem deseja ir lá?!”, perguntarão os guias locais, confundidos. E pelo menos algum deles — não sem a boa intenção de reorientar os desejos do neófito — tentará dissuadi-lo da idéia de deixar a superpovoada cidade da região de Gizeh para se internar no interior onde sobrevivem sinais autênticos do mundo antigo.

“Você está disposto a viajar trezentos e sessenta e cinco quilômetros abaixo do Nilo, e andar, no último trecho, possivelmente jipe ou lombo de burro, para alcançar um círculo de montanhas redondas, onde só há umas pedras para se ver?!”

Responda que sim, se estiver interessado. Insista na importância, para você (e até para ele, o jovem egípcio que lhe pergunta se acaso não dispõe de uma “camisa da Seleção”, na bagagem vinda do país do futebol), daquele lugar sem destaque, daquelas montanhas aplainadas pelo vento, numa depressão inóspita, em forma de anfiteatro, protegida por uma linha de palmeirais verde-escuros…

“Então, você já conhece o lugar?” — alguém se admira.

“Não, mas é como se conhecesse…” — você responde e demonstra, ao egípcio (que gostaria-de-morar-numa-Miami-com-pirâmides), que o país, para alguns visitantes, pode ser mais do que um postal vulgar, vendido a gente que talvez devesse visitar o mais propício “Egito” montado nos parques temáticos da Disney. (Os cachorros-quentes, ao menos, serão melhores, quem sabe, do que aqueles que um fellah prepara ao pé da massa de blocos da mais alta construção do mundo).

Por fim, sua insistência se mostra irredutível, falso turista. Você tem desejos estranhos, vontades firmes: parece até um terrorista que precisa chegar a um lugar deserto, para nada poder fazer.

“Tell el-Amarna!” O guia desconsolado — e menos ocupado — afinal estipula uma boa soma para lhe acompanhar nessa incursão (a primeira que ele fará a Amarna: nunca foi ao lugar!), cuja estranheza será relatada à mulher e aos vizinhos de Gizeh: “amanhã vou levar um brasileiro para ver as pedras rasas daquela cidade de Amenófis IV”)… E, numa manhã de céu azul de gaze — tocado pelo ápice quase irreal da Pirâmide sempre visível — você, afinal, estará partindo a caminho da mais abandonada das ex-capitais do Egito, preservada pelo menos da indiferença que nunca ultrapassa do maciço de Gebel Abu Feda, ao norte do qual se oculta o lugar de Amarna.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho