Fragmento
Vi uma foto de Anna Akhmátova,
numa oferta de segunda mão
em livraria de terceira
fechando as portas também baratas
em liquidação de quarta despedida
dos leitores de páginas impressas
à tinta das antigas tipografias
condenadas aos museus,
setor dos tipos móveis de Gutenberg
que não mais importa.
Setembro se derramava lá fora,
estação de sol sobre a fonte
de águas espargidas em torno da lua
de Vênus nativa molhando a ponta
tímida de dedos de mármore.
Pensei naqueles de Clarice criança,
subindo e descendo escadas
da casa entre movelarias e sebos,
vinda da Ucrânia para o coração
deste bairro de esquecidos
textos em hebraico e iídiche
de emigrantes deslocados.
Isso tudo para dizer que o livro
na minha mão, naquele momento,
entre outros escolhidos da cesta do alfarrabista,
era muito velho:
uma antologia de poetas russos
em papel cediço nas bordas do volume
de capa vermelha para poetas
comunistas e não-comunistas
entre bandeiras, letras e martelos
e foices sob águias de cabeça dupla:
PÉROLAS DA POESIA RUSSA
na lombada desbotada de imitação dos caracteres
não-latinos das línguas eslavas tão longe da praça
de bares anunciando promoção de aperitivos
e cerveja, em papelão garatujado
com pressa antiestética.
O que comprar?
As “Pérolas” ou as garrafas suadas,
louras da bebida gelada na tarde quente,
perto, muito perto do velho sobrado
dos Lispector?
Clarice vira aquela gárgula do prédio
de uma camisaria de pobres?
E se molhava da poeira de água da fontedo centro da cidade onde viveu
a descoberta do mundo no Recife
Clarice não podia ter saudade
de dois meses de vida em Tchetchelnik,
na Ucrânia de árvores nacaradas.
Eu tenho saudade de um livro de contos russos:
foi lido na extrema infância distante do centro,
na biblioteca afogada entre faixas de luzes
do sol entrando por postigos.
Havia fábulas alemãs e russas,
meio sonolentas debaixo da sombra
de amendoeiras em flor da Bessarábia
(essa palavra de areia e teia de tarântulas
presas no quintal esmagado dos Bukharin),
e eu tenho saudade de todos os livros de literatura
infantil, adulta e futura,
quando livros de literatura vão se tornando
dispensáveis para o percentual de adultos
que lêem obras do gênero a caminho
de ser uma lembrança do passado coletivo
deixado para trás:
“A uma tal velocidade, essa modalidade de lazer
tende a desaparecer em meio século”,
conforme se lê em http://www.arts.gov
[Fecha o parêntese estatístico entre endereços
eletrônicos sucintos e sinistros de indiferença
pela sorte dos livros de nenhuma ajuda
para si mesmos.]
Tais prognósticos, a praça dos bares,
o sebo sem ninguém, a antologia
e a foto submarina,
cinzenta do pó na página
iluminada de dentro
pela marca d’água imponderável
a derreter o fogo da imagem
nos olhos vindo de contemplar
“o luminoso dia e a vazia casa”,
os versos lidos ao acaso,
tantos poetas mortos,
tudo fazia crer
que algo andou errado, muito errado,
profundamente errado
entre acordar e ter decidido
comprar um último livro.
Havia poetas ainda vivos
entre as pérolas desbotadas
dos curtos verbetes sem a data de morte
de velhos portanto sobreviventes,
de boina e cachecol
e ainda aprendendo com a perplexidade
de W. H. Auden:
“A poesia nos procura até os 25 anos.
Depois, nós é que temos que procurá-la”.
(…)
Vi uma foto de Anna Akhmátova será lançado em agosto durante o 7° Festival Recifense de Literatura.