Antonel abriu a porta da tapera e contemplou o amanhecer que se fazia ocre ao leste. A poeira levantada pelos veículos na rodovia subia aos céus lembrando implacável a seca sina do sertão. Saiu pro terreiro com uma caneca d’água na mão. Lavou a cara e cuspiu longe a água do gargarejo. Sumiu no interior da tapera pra de lá surgir com uma enxada às costas e uma garrafa plástica com água na mão. Antonel estava pronto pro trabalho de todo dia. Sem café e sem massa na barriga.
Terra imprenhe. Terra sempre terra. Antonel contava apenas com a chuva e a força dos músculos pra trabalhar o roçado. Preparo e irrigação do solo eram assuntos de outra banda do mundo. Na parte do mundo de Antonel reinava a fraqueza das armas e das bênçãos. Arriscara todos os caminhos da pobreza. Da lavoura pro garimpo. Do garimpo pro comércio. Do comércio pra São Paulo. Em São Paulo direto pra miséria do subemprego. Depois trocou de lugar sua miserabilidade: de São Paulo de volta para seu Paramirim. Pelo menos agora era um miserável proprietário das míseras tarefas de terra que foram de seus pais. E sozinho. Mulher nenhuma quer mais labutar a terra pra um nada. Querem agora é televisão e festa na praça. A vida na roça deixou de ser apenas dura para se tornar um desvio de vida. Uma vida virada ao contrário antes da hora chegada. E a cidade já tem de um tudo como se capital fosse. É mais barato comprar farinha no mercadinho. Tudo no mercadinho é mais barato do que o que se planta nas roças. Tomate vem é de Feira de Santana! Serviço de roça virou praga de homem desnorteado. Tocar roça é tapear o juízo com cansaço e esperança moída. Daqui não arredo até me aposentar. Restou então a Antonel esse trabalho como obrigação de vivente. E ao trabalho ia naquele amanhecer.
Viu de longe que outros já labutavam na área. Apressou o passo. Antonel sabia que de nada adiantaria sua pressa e mesmo assim acelerou o rojão. Ruminou o rumo que a situação tomava. Teria que fazer algo por ele indesejado se persistisse a perseguição: seus braços preparariam a morte de Zuíno. De Zuíno e de quem mais se intrometesse. O fato de ser mulher e menino não impediria participação no desfecho. Tinha certo é que o barulho não podia começar. Depois de começado, quem entrasse no meio morreria. Mais humilhação é que não poderia agüentar. O Senhor Jesus era testemunha de seus esforços pra evitar sangueira no barro.
Antonel se aproximou da rodovia traçando um desvio pelo mato ralo. Pisou no acostamento distanciado de Zuíno e sua gente. O asfalto não apresentava buracos no trecho que alcançara. Zuíno se apossara do trecho mais destruído da rodovia e ampliava o território dia após dia. Da mesmíssima forma que os buracos faziam com o asfalto. Muitos deles abertos pelas mãos de Zuíno. O desgraçado obriga um dos filhos a dormir no local pra garantir que somente ele aproveite a caridade de motoristas e passageiros. Vem me empurrando todo dia cá pra cima da serra. A buraqueira fica toda pra ele. Daqui pra frente o asfalto caria mas dá passagem veloz aos carros. Que proveito terei nesta merda? Nenhum! Aqui só vou comer poeira. O desgraçado pensa que eu sozinho não reajo. Que eu sozinho não posso com eles. Que eu sozinho não serei homem de peitar esse atrevimento de dono da bê-erre. Mas pense o sujeito o que quiser. No acabar de minha paciência ele também se acabará. Ele e sua cambada.
Antonel resmungou raivoso e subiu um pouco a estrada pelo acostamento. Mais à frente a rodovia afundava-se em um pequeno morrote. Duas paredes em arco de pedra e terra limitavam o trecho. Havia buracos ali. Caminhões e automóveis vindos da serra da Mangabeira reduziam a marcha para superar os buracos. Antonel sopesou a enxada. Não podia contar com donativos dos que vinham de Ibotirama. Zuíno e sua gente aproveitavam deles primeiro. Apoiou a enxada no chão e percebeu de imediato o problema: o acostamento acabava-se na parede do morrote. De um lado e de outro. Teria que pegar barro mais abaixo e trazer ao ponto em que se encontrava. Antonel não possuía carrinho de mão. Nem carroça ou qualquer tralha que servisse ao carreto do barro. Sentiu sangue e estômago esquentarem. O sangue latejou em sua têmpora e o estômago doeu de forma insuportável. Ódio e fome se enrodilhavam em Antonel feito serpe traiçoeira.
Estendeu a mão para os carros que passavam. Interessavam restos de pacotes de biscoito e frutas para matar a fome. De nada adiantariam moedas nestora da manhã. Nada. Os carros insistiam em zunir à sua frente sem redução expressiva da velocidade. O dia parecia provocar Antonel.
Era preciso então tapar buracos nem que fosse fingimento. Por um longo momento a rodovia permaneceu aquietada. Antonel ficou de queixo fincado no cabo da enxada. E assim reparou na parede do morrote em frente. Lá estava a solução: escavar o barranco e dali retirar o cascalho necessário ao tapa e retapa. Nem mesmo precisou atravessar a pista. Começou a cavoucar do lado em que estava. Ajuntou cascalho no acostamento e deu início à operação tapa-buracos esquecido inteiramente do concorrente Zuíno. De uma picape atiraram moedas que recolheu do asfalto sem pressa. Melhor seria se fosse comida. Paciência.
Voltou ao escavamento do barranco. A enxada tiniu e resvalou em pedra grande. Antonel verificou com um rápido olhar o estado da enxada e deu um passo à esquerda procurando local mais apropriado à recolha do cascalho. Foi então que seu olhar esbarrou em algo que brilhava justo no ponto em que a enxada cantou fino e seco. Suspendeu o serviço e resolveu investigar. Arriou a enxada. Largou-a no chão para mais facilmente alcançar com as mãos o alto do barranco. Afastou o cascalho que a enxada havia removido na pancada. E tocou ignorante a grande pedra escondida no barro do morrote. Sentiu-a lisa e angulosa. Abaixou-se e pegou a enxada novamente. Suavemente raspou o cascalho alargando a área em redor da pedra. Então viu. Viu que era cristal. Mais que isso: uma pirâmide de cristal! Imensa e bela! Absurdamente exposta em seu ápice no barranco da rodovia.
Antonel recuou a sentir toda sede do mundo em sua garganta. Passou a mão na testa a repetir para si mesmo que não era possível. Aquilo não era possível! Cristal no acostamento da bê-erre! Como podia estar assim o cristal à flor da terra? Trator e patrol removeram o miolo do morrote para construção da rodovia décadas passadas. Como puderam passar tão rente ao bojo e não despertá-lo? Seria verdade que o cristal caminhava com o passar do tempo por dentro da terra? Meu Deus! Lá estava a ponta luminosa da pirâmide de cristal a convidá-lo para banquetes e farras tremendos…
Não demorou muito e Antonel recuperou-se do aparvalhamento que o assaltara diante da pedra de cristal. Não era esperto em garimpo mas sabia que ali havia mais que aquela grande pedra. Com certeza havia um veio de cristal naquele barranco. Sentiu vontade de gritar. Felizmente a garganta ressequida não permitiu a explosão do grito. Junto com a vontade de gritar veio a lembrança de Zuíno e sua corja. Antonel sentiu o corpo gelar. Virou-se na direção de Zuíno e o viu diminuto à sombra de um papelão enquanto os filhos jogavam barro nos buracos da estrada. A sede apertou. Antonel pegou a garrafa d’água de um recanto ensombrado. Bebeu quase toda sem tirar os olhos de Zuíno. A cabeça a mil.
O ruído de carro se aproximando o trouxe de volta ao acostamento da rodovia. Um motorista atento poderia ver o faiscar do cristal no barranco. Então Antonel jogou barro de volta no barranco cobrindo a ponta da pirâmide cristalina. A carreta passou envolvendo Antonel em poeira. Fosse seo Amaro vivo e em vez de problema teria solução pronta pra esse garimpo rodoviário. Vou atrás de Zildo na Cachoeira. Antonel sentou-se pensativo ao pé do barranco. Zuíno não podia perceber o ocorrido. Não posso me arredar daqui antes deles. Bebeu o resto da água na garrafa. Vou engolir cuspe até de tarde mas daqui não saio. Mais carros passaram pela rodovia. Mais poeira subiu. Vez em quando jogo terra nesses buracos. Preciso é de comida. Por hoje como até barro. E Antonel riu enquanto alisava o barranco. Precisava levantar-se e continuar a tarefa de atirar areia e cascalho nos buracos do asfalto com a velha enxada. É só por hoje. Amanhã vou tirar é cristal. Vou comer manjares e beber elixires. Voltou até o barranco e marcou o lugar com um arranjo estrelado de pedras. Sentou-se no acostamento novamente. O sol bateu de cima. Sentiu uma vertigem,