Vermelho absoluto

Conto de Amadeu Baptista
Amadeu Baptista, autor de “Desenho de Luzes”
01/08/2001

Foi num lugar vermelho que os deuses imaginaram a criação do mundo: no acaso das transmutações que foi necessário realizar para transfigurar o nada em tudo quanto passou a ser, uma ambivalência explosiva revolveu a amplidão da criação e fez, na incomensurável dimensão de tudo o que não existia, a marca distintiva de uma presença avassaladora e consequente. Assim, e antes de mais, o céu e a terra. Na fricção que teve de existir entre o nada e coisa nenhuma para que a criação se estabelecesse, de súbito soltou-se da boca do mais soberbo e belo entre todos os deuses uma matéria vermelha da qual se fez o extensíssimo relâmpago que instituiu no início a geração de todas as coisas, de todos os nomes, de todo o conhecimento.
A terra era sem forma e vazia e havia trevas sobre a face do abismo, mas, desde logo, estava consumada a predestinação de que pelo vermelho se atribuiriam as colorações do mundo, havendo um espírito a pairar sobre as águas e ordenando a construção da luz para que, sem mais, logo fosse criada a distinção entre o bem e o mal: soberbo e belo o deus constatou que era boa a luz e o vermelho o índice porque todas as coisas seriam glorificadas sobre o tempo dos tempos. E o deus chamou vermelho ao dia e encarnado às trevas, e foi a tarde e a manhã do primeiro dia.
Passado o primeiro dia da criação do mundo os deuses exultaram de regozijo divino: em um lugar vermelho onde nada existia a não ser a sua vontade transfiguradora de deuses, passou a existir um reduto sublime que, em expansão, aglutinava todo o espaço criado, tudo o que era visível e invisível, a estrela primeira e o primeiro planeta, o primeiro rubi e a cosmogonia primeira. Águas vermelhas ocupavam todo o mistério existente, todo o sortilégio das coisas. E foi possível, então, proceder à separação entre águas e águas; e o deus, soberbo e belo, chamou céu ao céu, que por sua vez gerou outros céus, céus infinitos no infinito firmamento, tendo sido a tarde e a manhã do segundo dia.
Para onde quer que os deuses olhassem viam a inexorável sequência do vermelho, eram vermelhas as nuvens em suas formas mais densas, cirros vermelhos adornavam os céus em intensidades diversas, cúmulos e estratos ampliavam a abóbada celeste em maior magnificência e esplendor. E alegrou-se o deus do que havia criado, pelo que mandou que o turbilhão das águas se juntasse num único local e uma parte seca aparecesse. E o deus, soberbo e belo, chamou terra à parte seca que apareceu, e mares chamou ao indizível ajuntamento das águas que criou. E disse deus: produza a terra erva vermelha, erva que dê semente, árvore frutífera que dê fruto segundo a sua espécie, cuja semente esteja nela sobre a terra. E assim foi. E foi a tarde e a manhã o dia terceiro.
Entre todas as árvores e entre todos os frutos o vermelho era absoluto. Um vento encarnado circulava nas florestas vermelhas, tufos de avenca vermelha nasciam nas mais recônditas grutas, girassóis vermelhos seguiam o curso da luz. De vermelho se tingiam os frutos, eram vermelhos os figos, as amoras silvestres, as cerejas, as humildes groselhas, as frágeis framboesas, e, sendo as pêras maduras, vermelha era a sua polpa e o seu sumo. E o deus disse: haja luminares na expansão dos céus, para haver separação entre o dia e a noite, e sejam eles para sinais e para tempos determinados e para dias e anos. E aconteceu que grandes luminares vermelhos se implantaram no céu: um grande, chamado sol, que governava o dia e outro, algo menor, de um vermelho quase lilás que governava a noite. E foi a tarde e a manhã do quarto dia.
E o deus, soberbo e belo, achou por bem que as águas vermelhas abundantemente produzissem seres de alma vivente, e as aves voassem sobre a expansão dos céus, pelo que logo foram criados a baleia vermelha e peixinho de aquário, o robalo cor-de-fogo e o tubarão cardinal, e um bando de estorninhos vermelhos e uma mancha púrpura de flamingos nesse mesmo instante cruzou os ares e animou o universo. E o deus, vendo-os vermelhos, os abençoou, dizendo: em vermelho, em vermelho vos digo, frutificai e multiplicai-vos, enchei as águas nos mares e as aves se multipliquem na terra. E foi a tarde e a manhã e o dia o quinto.
E a terra vermelha produziu almas vermelhas viventes, conforme a sua espécie; gado e répteis, bestas-feras, germes e micróbios, conforme a sua espécie. E assim foi: a vaca vermelha pastou erva vermelha e encontrou um touro fúcsia, uma gazela vermelha avistou um gamo vermelho numa colina rosada, e uma pantera, por sinal grená, a seu par se juntou, expandindo a espécie e a gradação vermelha sobre a terra. E criou o deus o homem à sua imagem: à imagem dos deuses o criou, macho e fêmea, abençoando-os. E disse: frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra vermelha, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre todos os animais que se movem sobre a terra. E viu o deus quanto tinha feito, e eis que era muito bom: e foi a tarde e a manhã do dia sexto.
Tudo quanto existia era vermelho. E o deus, soberbo e belo, não descansou enquanto, no concílio, aos outros deuses foi explicar porque tudo era assim e era bom. E disse: este vermelho, como se vê, é matricial; sendo claro, é brilhante, diuturno, tónico, incita à acção, lançando como um raio o seu poder num imenso e incontornável desígnio sobre as coisas, a sua luta; e sendo escuro é nocturno e secreto, iniciático, purificador, tão abrangente quanto todas as forças divinas reunidas encorajarem ao sagrado e à transgressão, à bonança e ao sobressalto, ao prazer e à morte, ao erotismo e ao crime, à ciência e à arte. E todos os outros deuses o aclamaram, celebrando com vinho novo, arroz vermelho e carne muito fresca. E o deus, soberbo e belo, abençoou o dia sétimo.
Um vapor rubro subia da terra, e regava toda a sua face. E o deus formou o homem do pó vermelho da terra, e soprou em seus narizes o fôlego da vida: e o homem foi feito alma vivente. E o deus plantou um jardim no Éden, da banda do oriente: e pôs ali o homem que tinha formado. E fez brotar da terra vermelha toda a árvore agradável à vista, e boa para comida; e a árvore da vida, no meio do jardim, e a árvore do bem e do mal, além de um dragoeiro, que é uma árvore da qual se extrai uma resina transparente de cor vermelho sangue, conhecida por sangue de dragão e que serve para fixar a limpidez de quantos criam utilizando a cor para figurar as entranhas das coisas e os seus mais ágeis movimentos predadores. E dali saía um rio para regar o jardim que se tornava em quatro braços e chegava, por isso, aos quatro cantos do mundo. E o deus, soberbo e belo, ordenou ao homem, dizendo: de toda a árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do bem e do mal não comerás porque, no dia em que dela comeres, certamente morrerás.
Por via desta ordem, impacientou-se o homem, porque já entendia sobre as coisas o suficiente para perceber que não era nem mais nem menos que o deus que o criara, conforme à sua semelhança e feito à sua imagem. E começou a chamar nomes a quanto o rodeava, romã à romã, pedra à pedra, barro ao barro, víbora à víbora, serpente à serpente, estupidez à estupidez, equívoco ao equívoco, uma vez que, no mais íntimo de si, sabia já de quanto vermelho o seu coração havia sido feito, e a que cor carmesim o seu espírito pertencia, e de que deuses era herdeiro, e que, como sempre, em última instância, algum bem no mal existiria, e algum mal no bem, viesse de que árvore alguma vez viesse.
E disse o deus, soberbo e belo: não é bom que o homem esteja só. E fez-lhe uma adjutora, tomando uma costela do homem. E da costela, que o deus tomou do homem, formou uma mulher: e trouxe-a ao homem. E o homem disse: esta é agora osso dos meus ossos, e carne da minha carne; de mim igual e a deus igual, do qual viemos. E estavam ambos nus, e se riram, e brincaram no prado escarlate.
Brincaram e brincaram horas infinitas, trocando entre si suavísissimas carícias e beijos tão ardentes como tudo quanto os cercava naquele mundo vermelho e quente e acolhedor que desde há tão pouco tempo iam descobrindo. E disse o homem à mulher: és tu a árvore desejável, abro os olhos por ti e só a ti te vejo, deusa que és, tu dás-me entendimento e nada mais posso fazer do que amar-te e amar-te tão divinamente como divinamente nós fomos criados.
E o deus, soberbo e belo, ruborizou de inocência e fez secar a árvore do bem e do mal, porque amado e amada desceram o jardim, aos canteiros do bálsamo, para colher os lírios vermelhos desse tempo.

Amadeu Baptista

Nasceu no Porto (Portugal), em  1953. Fundou e co-dirigiu a publicação Babel – fascículos de poesia e co-organizou a revista Orfeu 4. É autor dos livros de poesia As Passagens Secretas (1982), Green Man & French Horn (1985), Maçã (1986), Kefiah (1988), O Sossego da Luz (1989), Desenho de Luzes (1997), entre outros.

Rascunho