Venta-aberta

Conto inédito de Helena Terra
Ilustração: Denny Chang
01/03/2022

Depois de usar o penico, sua mãe não quer que ela use os banheiros da fazenda, ela pega o chapéu jogado no canto, fica na ponta dos pés e se olha no pequeno espelho preso à parede antes de gritar, Nena, terminei aqui! Até que fico uma belezinha de aba larga pensa, batendo, como de costume, um pé no assoalho de madeira. Não lhe parece justo ela ter de sair para a cavalgada sem um. Nem o seu pai, nem o seu irmão, nem a peonada toda montará os cavalos usando uma florzinha nos cabelos, ou nas carecas, ela se dá conta já rindo do destino de Quinzinho. Ele ainda há de ficar com a cabeça lisa, lisinha, lisíssima, pragueja enquanto ajusta o barbicacho em seu rosto suave e perfeito de menina. Não é que ela não goste de ser uma. Sua mãe foi, Nena, todas as mulheres que a cercam foram, e elas, definitivamente, se parecem mais com uma árvore coberta de geada que com o bando de botas sujas que dão duro nas lidas. O ponto é que ela acha a coisa mais linda do mundo um par de botas. Ela só tem botinas e, é claro, um monte de sandálias, tênis e tamanquinhos. Diz sua mãe que é porque, no Empório do Gaúcho, eles só vendem a coleção masculina. Conversa para boi dormir, ela sabe. É só pedirem um número trinta e dois e pronto. Se tivesse dinheiro e pudesse sair sozinha, ela mesma comprava. Não pode. Não pode mais rolar no chão se estiver de vestido, não pode mais ver o Quinzinho trocar de roupa, não pode mais se pelar e sair campo afora. Não pode mais isso e aquilo em uma lista de proibições que já dá quase para preencher uma folha de caderno. Quando as aulas voltarem e a professora pedir uma história sobre as férias, talvez, ela arranque a página e a jogue em sua cara. Se joga na da mãe, vai de castigo e vai que leva um relhaço do pai. O pai tem uma coleção de relhos, todos diferentes, mas com finalidades iguais. Pouco importa se chamados de chicote ou de rabo de tatu ou de rebenque, eles causam dor embora Quinzinho insista em dizer que eles apenas colocam um pouco de vontade nas potrancas preguiçosas. Mas veja só quem fala de preguiça, ela, de vez em quando, retruca, arregalando os olhos, logo tu, o piá que não arruma nem a própria cama. É verdade. Nena arruma. Arrumar cama não é serviço de homem. Nem na cidade é. Onde quer que a família esteja, Nena estende os lençóis, alisa os cobertores, afofa os travesseiros e coloca as colchas. Nena é sempre a primeira pessoa a acordar e a última a ir dormir, ela e a guaipeca sem nome que a observa e a segue até onde permitem. Nos quartos, não. Exceto no de Nena. No de Nena, se ela não se incomoda de dormir com pulgas, diz o pai, ela que durma. O pai é um pai que não bate nos filhos e na esposa. Ameaça. Homem não bate em mulher nem como uma flor faz parte de seu falatório nas rodas de chimarrão. Nas de cachaça, ele não tem tanta certeza. Afrouxa as rédeas da regra conforme o caso ou o causo. O causo é o seguinte, patrão, alguns dos peões falam nos poucos momentos em que arrumam coragem para fazer reclamações: além dos carrapatos, de uma hora para outra, urutus-cruzeiro deram para se aproximar dos animais. Deve ser por isso que os ratos sumiram. Os ratos são sempre os primeiros a abandonar o barco, e as vacas são sempre as primeiras a morrer. Estrelinha, a de barriga mais abaulada, não resistiu ao veneno. Pudera, deram à bovina um soro caseiro: leite com cebola, álcool e folhas e galhos de uma árvore. Me Tarzan, you macaca, com frequência Quinzinho diz, do alto de uma, para implicar com ela que, de fato, não gosta de subir até o topo. E daí, ela responde, sacudindo os ombros. Daí que tu não passa de uma menina boboca, ele diz, desafiando-a. Ela tem medo de altura. Magricela como é, se cai, se parte ao meio e ainda se engasga com um pirulito. Ela deu para andar com um na boca desde o churrasco em que a peonada se esbaldou com palitos. Homarada mais mal-educada, bando de bicho, se a patroa vê, se zanga, Nena disse. Ela não ficou preocupada, sua mãe pouco se junta a eles, cheiram demais a suor de cavalo e, à mesa dela, palitos não são postos nem sob a mira de uma espingarda. Quinzinho masca palitos e tem uma arma reservada para quando crescer. Reservada porque é macho e tem de saber atirar e, no futuro, se defender se for necessário. E matar por farra, como quando, noite alta, sai com o pai para caçar lebres. Com que fim a matança, ela se pergunta, se eles não comem carne que não for de gado, de porco e de ovelha. Até galinhas, os dois desprezam. Galinha é comida de mulher. Mas perdiz com polenta mole, eles aceitam por uma questão de gula e de status. Ela não gosta da palavra status. Ela não gosta das palavras que separam as pessoas. Ih, mas o mundo está cheio delas, Nena volta e meia diz. Nena conhece as que a colocam em seu lugar. Nena tem um bem reduzido. Quinzinho largou um me Tarzan, you macaca e depois um cada macaco no seu galho para Nena também. E, paff, um peão deu-lhe uma bofetada na cara. Bem-feito, Quinzinho, tu tinha era de levar uma tunda, se eu tivesse o teu tamanho, eu mesma dava, que o boboca mimado é tu, ela falou, defendendo Nena. Mas tal qual ela, Quinzinho é intocável. Eles são crianças intocáveis. A tunda vai acabar é no lombo do peão. O ditado que diz que a corda arrebenta sempre no lado mais fraco é real na fazenda. O Pedro-das-urtigas que o diga! Primeiro errou a prosa falando mal do prefeito e dos amigos do prefeito, todos unha e carne com o patrão, depois pegando o machado fincado em uma tora e amaldiçoando as terras que o exploram. Do seu cansaço de passar à farinha de mandioca e de ter os dedos, o rosto e os lábios rachados pelo frio ninguém quis saber. O medo não tem voz entre os mais fracos é uma lei, ainda mais que o pai ergueu a dele. Pedro-das-urtigas, tu é um grande dum burro ingrato, disse, e ingrato não sai da minha propriedade assim no mais, que aqui a gente mata a cobra e mostra o pau. Ela não tem, meninas não têm um. Ela, mais cedo, um pouco antes de sentar no penico, pensou se não é a falta da minhoca entre as pernas o que lhe prejudica e em mostrar a pedra com que, em um lance certeiro sobre a cabeça, matou a coral que se atravessou em seu caminho. Na hora, não sentiu medo. Nem teve tempo. Ou ela ou eu, pensou, agindo com uma destreza invejável. Ela é uma menina rápida. Rápida no gatilho como ouve nos filmes de caubóis, muito mais ágil que o Quinzinho, o seu pai e os peões, mas ela é, de fato, menor do que pensa. Ela é pequena e é uma prendinha, a toda hora lhe dizem, e ter matado a cobra, bem verdade, lhe deu dor de barriga. Ela não tem vocação para a morte. No último dia de desverminação do gado, com giz, escreveu sobre uma tábua da mangueira: vida longa ao rebanho antes de apagar e escrever vida longa às mulheres e sair correndo.

Helena Terra

Nasceu em Vacaria (RS). Cursou a Oficina de Criação Literária de Luiz Antonio de Assis Brasil. Em 2013, publicou o romance A condição indestrutível de ter sido. Organizou, com Luiz Ruffato, a antologia Uns e outros. É coautora da novela Bem que eu gostaria de saber o que é o amor (2020), em parceria com Heitor Schmidt. Acaba de lançar o romance Bonequinha de lixo. Vive em Porto Alegre (RS).

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