Vaso pés semente

Conto inédito de Claudia Lage
Ilustração: Fabiano Vianna
01/11/2021

Creio no mundo como num malmequer
Alberto Caeiro

A mulher olha as flores amarelas que emergem da planta como se fosse uma grande surpresa, aquela aparição na sua manhã sem sol. É uma Oxalis Chrysantha, da família das Oxalidacea, reconheço de longe, é como um trevo, só que radiante, a mulher talvez não esperasse o desabrochar daquela sorte, o seu olhar é incrédulo e decepcionado.

Talvez ela tenha comprado a planta com a promessa de outra flor, os desavisados costumam não gostar nem mesmo quando a surpresa é boa. A mulher começa a fazer algo que me assusta, com uma colher cavuca na terra do vaso da Oxalis Chrysantha, cava com tanta força, outros ares me lembram, o remexer da terra escura, os meus pés finos, sempre finos, sempre descalços, sentem a dor de minúsculas pedras, havia tantas azedinhas, as violetas sempre me hipnotizaram, nunca as colhi com medo de ofensa, nem mesmo as roxas de mistério ou as verdes para o chá, tão boa para o organismo, mas essa tem outro nome, outra família, era perto das amarelas que eu deitava, algumas mais altas se inclinavam, tocavam o meu rosto, o vento as levava, trazia, levava, a pele, pétala.

Essa mulher me traz antiguidades, ainda cavuca a terra, usa uma colher de cozinha, o que ela quer, arrancar a raiz, destruir a Oxalis Chrysantha? o caule já oscila sem vento, essa mulher, o que lhe aconteceu, nem esse pequeno sol a comove mais, o descaso diante das belezas me fere. É ferida que termino de regar as minhas flores e ervas, volto à sala e meus pés se ressentem, o piso frio, sinto falta da claridade externa e acendo a luz, mas nada me satisfaz, já estava acostumada com esses prédios de paisagem e agora lembro do horizonte, o que era montanha, o que era vento e mato agora é cimento e vasos de plantas em minha varanda, eu também tenho surpresas pelas manhãs.

A verdade é, se essa mulher não quer a Oxalis Chrysantha, por que a levou para casa e a colocou num vaso, eu a imagino pagando pela planta e dizendo ao vendedor que a achou muito bonita, ela não sabia que florescia tanto? Talvez a incomode a cor brilhante em seu rosto assim tão à vista, como nos arde os olhos ao encarar o sol. Talvez ela tenha recebido a planta de presente e não soube o que fazer com aquilo, eu mesma quantas vezes não sei o que fazer com o que me dão. Às vezes, não sei o que fazer comigo quando outra pessoa se debruça muito sobre mim.

A Oxalis Chrysantha precisa de ajuda.

O que esta mulher procura remexendo na terra, o que poderia haver ali além da própria matéria que faz a terra ser terra, que a forma, minerais, poeiras, resíduos de raízes e vegetais já extintos, não será isso que ela procura, o que já morreu, deve ser algo perdido mas que se possa pegar, uma moeda, um anel, talvez uma pedra, um cristal. Uma vez, usei um cristal para dar sorte, como se a sorte fosse o meu destino que andava fora mim e que só por acaso me encontrasse. Apertava forte o cristal transparente, a palma da mão apertada sobre ele, como se a transparência absorvesse as linhas inscritas na pele. Vi na minha palma que já fui cigana numa praça às sextas-feiras, vi no centro do cristal que já andei pelo deserto com uma sede que ainda sinto. Vi no interior da pedra riscos finos como as linhas da minha mão. A mulher não percebe que grande parte da terra do vaso já caiu no chão e cobre os seus pés. Se a minha voz não estivesse tão longe eu a avisaria. Ela escutaria o meu grito? Pararia de cavar? A mulher não sabe que a terra deve estar sempre abaixo e nunca acima dos nossos pés? A mulher não sabe como é perigoso lidar com as coisas dessa maneira?

Parece que há muita terra para pouco vaso. Posso estar errada, muitas vezes erro sem perceber, a aparência das coisas sempre me enganou. Já não sei por quanto tempo assisto a esse desenredo, já não calculo as horas pelos ponteiros, mas pelo sentimento de peso ou leveza que me dão.

Aqui estou há séculos na minha varanda tão alta assistindo a essa mulher solitária e distante como se no topo de uma montanha diante de outra. Somos duas montanhas que não se reconhecem. A mulher nem me enxerga porque esqueceu como olhar adiante. De repente, uma raiva entra pela sola dos meus pés e sobe pelo meu corpo feito raio. A raiva é mesmo vermelha como na infância previ. Os meus sentimentos nunca falharam, eu que demoro a entender. Não é a primeira vez que odeio alguém antes que o pior aconteça. É como se o gesto me alcançasse com antecedência mesmo distante.

A mulher continua cavando como se o vaso não tivesse fundo, a terra continua saindo como se realmente houvesse ali profundezas. A terra chega na altura dos tornozelos da mulher, mas ela não percebe, ou age daquela forma que tantos fazem, fingem não ver o que se evidencia. A Oxalis Chrysantha se desequilibra, de longe vejo as suas raízes perderem o solo, algumas flores espicham, outras inclinam, como se procurassem se segurar em meio à queda que se aproxima, é o que diz a minha visão.

Às vezes, vejo como se visse realmente, é algo que me dói.

O amarelo das pétalas desbota um pouco, há nelas uma forte consciência do que são, o trevo, a sorte, o trevo sol, no interior também são chamadas de aleluia, aleluia-amarela, cultivadas com esperança, lembranças de possíveis milagres, e é exatamente por isso, por esse saber agora inútil, que desbotam agora. A essa altura a Oxalis Chrysantha já percebeu que é tarde e desaba no chão como se não esperasse outra coisa.

Se fosse um bicho, se tivesse dentes, se tivesse patas, a Oxalis Chrysantha já teria mordido a mulher, estapeado, arranhado, fugido, mas a reação das plantas é sempre essa de não se mover. Parada, ela espera que a outra criatura tome consciência do que está fazendo. Parada, ela arruma internamente um modo de resistir, o seu jeito nunca é para fora, é sempre por dentro.

Nada de uma planta engolir outra e dissolvê-la no ácido de um órgão criado para isso. A sua sobrevivência é enraizada, como eu muitas vezes em tempos antigos pensei que poderia ser. Mas um bicho não pode ser árvore nem outro vegetal, um bicho tem sangue e cérebro. E dentes, um bicho tem dentes. Na pré-história todos os animais já mordiam e mastigavam, no início do mundo um microorganismo engoliu outro e assim criou-se dentro da célula a multiplicação. Algumas plantas desenvolvem espinhos nos caules, afastam mãos, patas que tentam arrancá-las, outras, formam pontas afiadas nas folhas, ferem as bocas devoradoras, mas a Oxalis Chrysantha é suave desde sempre, a conheci na minha infância e ela sempre foi desprevenida.

Se tiver solo livre e espaço, a Oxalis Chrysantha se espalha sem medo. A mulher não sabe que essa planta tem raízes ramificadas e nunca estão sozinhas. Por debaixo da terra, permanecem unidas, e no subterrâneo também se desenvolvem e se aprofundam. As raízes mergulham na direção do centro do planeta, como se pudessem alcançá-lo. Ela se expande e ao mesmo tempo se interioriza. A Oxalis Chrysantha faz caminhos para dentro que nunca suspeitei. Como uma planta assim poderia se adaptar à vida de vaso? Raízes não são como os nossos pés iludidos com os sapatos. A Oxalis Chrysantha foi arrancada do seu lugar sem nenhuma consideração.

A mulher continua o seu movimento de tirar terra do vaso, talvez precise se certificar de que há algum fundo, ou fim. Talvez insista até não haver mais nada, até confirmar que realmente acabou. Ou talvez precise, ao contrário, recuperar o início, o vaso antes da plantação, o vaso semente, porque antes tudo brilha, irradia sem medo o que pode ser. Talvez esse desespero a tenha deixado insensível para as flores amarelas no vaso, o que já estava vivo ali. Sentimos tanto e ao mesmo tempo tão pouco. Ou talvez seja algo imenso que se perdeu, algo que nem a mulher sabe ainda nomear. Eu mesma quantas vezes não consigo processar o que me acontece, sinto o ruminar em meu corpo sem entender. A mulher não consegue encarar a Oxalis Chrysantha depois da queda, imóvel em seu espanto de planta desmantelada, as raízes expostas como a exigir uma reparação. A terra que sai do vaso é tanta, sobe pelo corpo da mulher. A realidade já me me enganou tantas vezes, mas há também o que se vislumbra, a raiz das flores amarelas, a sua profundidade e chão.

A mulher não sabe chamar o que ela regava até esta manhã, por cegueira ou vertigem, eu também já vivi na ignorância como se fosse mistério. Oxalis Chrysantha se chama aleluia, sorte, trevo sol, que obscuro desconhecer o nome das coisas, assim nunca as podemos alcançar realmente, a matéria, a ideia, nos escapam, como se as perdêssemos várias vezes.

Claudia Lage

Claudia Lage é escritora. Autora do romance Mundos de Eufrásia, entre outros.

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