Vazio: que não contém nada ou só contém ar.
Era assim que eu me sentia.
As pessoas nunca compreenderam o porquê do meu suicídio.
Aos cinco anos comecei a sentir este vazio. Brincava perto de casa, numa de suas ruas mais quietas. Avoada e sem rumo, alguém me chamou a atenção.
Um motorista ao volante de um táxi estacionado. Pediu que me aproximasse e perguntou se eu conhecia tal rua. Fez o gesto de que ia tirar um papel do bolso. Fiquei pensando, conhecia o nome de quase todas as ruas da redondeza. Eram nomes de flores: rua das Rosas, rua das Violetas, rua das Margaridas, rua das Orquídeas, eu tentava enumerar mentalmente todas elas.
Quando olhei melhor, vi que o desgraçado estava de braguilha aberta, agitando seu pau. Eu quis gritar, mas o grito não veio. Então saí correndo, apenas isso, e guardei essa lembrança pra sempre. Como se nada tivesse ocorrido.
Aos seis anos tive de ficar na casa de uma conhecida de meus pais, não lembro por quê, só lembro que chorei muito. Tive a sensação de estar só, perdida, desconectada do mundo. Cheguei à conclusão de que os seres humanos são maus, pois sentem prazer com o sofrimento dos outros. Essa mulher, irritada comigo, por um instante fez com que eu acreditasse que meus pais haviam me abandonado. Até que finalmente vi meus pais retornando.
Aos sete anos percebi que as crianças também são más. Eu era muito tímida, na escola quase não falava, por isso sofri muitas decepções e humilhações. Todos gozavam de mim.
Nessa época descobri também que a beleza e o dinheiro não faziam parte de minha vida. A beleza e o dinheiro. Para a maioria das pessoas ambos são imprescindíveis.
Após tantas descobertas fechei o coração e cresci assim. Amargurada. Nunca consegui acreditar em alguém. Nunca consegui acreditar nem mesmo em mim.
Aos quinze anos pensei ter encontrado alguém em quem pudesse confiar, me sentia bem na sua companhia, ao seu lado podia ser eu mesma. Até que um dia percebi que a amava.
Era a minha melhor amiga, mesmo assim ela não entendeu nada, logo começou a me chamar de lésbica e espalhou isso para o colégio inteiro. Mais uma vez senti um enorme vazio, uma angústia fria, fui expulsa do colégio.
Nunca quiseram ouvir a minha versão dos fatos, eu a amava sim, queria apenas um pouco de carinho, um pouco de calor e compreensão, por que não? Eu queria andar de mãos dadas, trocar segredos… Talvez porque eu nunca tenha tido uma irmã.
Meus pais, sempre preocupados com o que os outros iam dizer, acabaram me levando para outro colégio. Um convento. Meus pais eram muito religiosos e diziam que só Deus poderia endireitar a minha vida.
Só Deus mesmo, que tudo vê e tudo ouve, poderia ver e ouvir o que acontecia nas salas, nos quartos e nos corredores desse convento. Apelidei-o de Falsarium.
Eu era a noviça mais nova e a mais cobiçada. Todas, tão atenciosas, me chamavam carinhosamente de Anjo Loiro. Passaram-se meses desde a minha chegada e tudo corria muito bem. Eu podia estudar, ler e fazer o que mais quisesse. Eu até estava me tornando uma religiosa de verdade. Senti a minha verdadeira vocação. Aprendi a rezar e a conversar com o Todo-Poderoso.
Escrevia cartas aos meus pais, dizendo que estava adorando o convento e queria realmente seguir esse chamado tão irresistível. Comecei a acreditar em algo, a confiar nas minhas irmãs e a achar que o vazio que eu sentia podia ser preenchido com o amor divino.
Numa manhã de sábado uma das freiras me chamou aos seus aposentos, onde já estavam, além de mim, a madre superiora e mais duas noviças. Pensei que iríamos estudar as Escrituras ou rezar em intenção de uma das madres, que estava enferma.
Fiquei perplexa. Todas começaram a tirar o hábito e a ficar nuas. Perguntei ingenuamente o que estava acontecendo. Uma delas sorriu e piscou pra mim, dizendo:
— Tire o seu hábito, querida. Nós já sabemos de tudo, já sabemos de sua amiguinha do colégio. Achamos que você gostaria de matar a saudade.
Corri para a porta, mas a madre, do outro lado do quarto, acenava com a chave no meio das pernas:
— Vem cá, meu Anjo Loiro. Vem pegar a chave com sua boquinha angelical.
As outras riram.
Fui agarrada e deitada à força na cama.
Depois que todas se saciaram, saíram do quarto. Antes de fechar a porta, uma delas ainda me chamou de tesão loiro. Ninguém percebeu que eu estava totalmente gelada, que lágrimas secas tornavam pegajoso o canto dos meus olhos.
Voltei ao meu quarto.
Desse dia em diante não consegui dizer uma só palavra. Tive febre alta por muitos dias. Algo no meu organismo parou de funcionar.
Nunca mais ninguém me tocou. Nenhum comentário foi feito. Deixavam-me trancada em meu quarto. Nem a visita de meus pais eu podia receber, e todas as cartas que escrevia eram lidas de antemão.
Passaram-se dois anos. Mudez total.
Eu ainda não conseguia dizer uma palavra.
Certa de que nunca abriria a minha boca, as freiras afrouxaram o laço. Tive o consentimento de sair do meu quarto e, uma vez ou outra, rever os meus pais.
Dezoito anos. Eu tinha acabado de completar.
Para comemorar meu aniversário, tomei vidros e vidros de comprimidos que eu havia pegado no ambulatório.
Estava ainda lúcida quando consegui escrever na parede do meu quarto a palavra que sempre fez parte da minha vida. Essa palavra que nunca me pediu permissão, apenas se instalou e ficou.
Vazio.
Trinta anos.
Como podem ver, eu menti. Suicídio? Não. A quantidade de comprimidos não foi suficiente.
Fui condenada pelo assassinato da madre superiora, da freira e das duas noviças. Os corpos ainda não foram encontrados. Jamais serão. Fazem parte do meu metabolismo: como os meus pais, são carne da minha carne.
Nesta cela, neste presídio, faço a minha justiça, a minha refeição sagrada. O vazio é diariamente preenchido não mais com a minha dor, mas com a carne alheia que hoje me acompanha.
Isso me anima, é minha vocação. Há tantas coisas por fazer…
Certo taxista que ainda preciso localizar.