Uma história de Alexandria

Em Alexandria — onde ainda vaga a alma helênica do Bicórnio — conheci um egípcio, culto e educado, que se dizia da família de Thuban Abulfaiz
01/05/2001

Em Alexandria — onde ainda vaga a alma helênica do Bicórnio — conheci um egípcio, culto e educado, que se dizia da família de Thuban Abulfaiz (e mais não posso dizer do nome sob o qual deve viver, ainda, no bairro de jardins soterrados).

Foi ele quem me contou a história, exatamente da forma como aqui vai narrada — talvez com algo da fantasia de um comerciante nato, surpreendentemente verídica e sincera, por se referir a um acontecimento da juventude do seu pai, descendente do bisneto de Abuazz — uma das Colunas do Sufismo — , chamado Abulfaiz, fundador da ordem Malamati. A história é esta:

O pai de Abdul-Qadir (o nome é fictício) apaixonara-se, na juventude, por uma  pequena cabeça de pedra calcária. Tinha o nariz inteiro e uma coroa alta, intacta. Naquele tempo, antes de Kemal Ataturk (esta história se passa em Constantinopla), não havia o zelo das antigüidades como patrimônio inalienável do país — zelo que se tornaria  quase uma obsessão para os Jovens Turcos. Escavando, os camponeses às vezes achavam coisas antigas, que vendiam a compatriotas e a estrangeiros interessados.

A pequena cabeça fora encontrada por um sujeito escavando quase no quintal da sua  casa, em algum lugar da fronteira com a Síria, entre areia molhada e a tristeza de todas as  coisas sepultadas que já estiveram em uso, completas e novas (e beleza — de pedra e carne — era vendida e  comprada também no tempo em que o pai de Abdul-Qadir veio a se apaixonar  pela  cabeça que ele viu num antiquário). Abdul não era um arqueólogo — não havia arqueólogos em Scutari — e nem era negociante no ramo de antiguidades, mas apenas encontrara (e comprara) a cabeça quando ainda no tempo dos devaneios de solteiro, antes do casamento com Azyadée, que teria quebrado a cabeça egípcia (porque era uma cabeça egípcia), se fosse no tempo do noivado ciumento… Abdul-Qadir era um homem letrado, que sabia das descobertas de Carter e de outros famosos arqueólogos trabalhando no país dos seus antepassados. Assim, comprara o objeto — que não era barato — sob um fascínio estranho e inesperado. O preço pago, em todo caso, consumira boa parte das economias do rapaz sério, preparando-se para o futuro e vigilante, por isso, das próprias despesas, num grande caderno de contas (no qual assinalara  o excesso: “Cabeça: x. PAGA à vista. Comentário: Perdi a minha”.)

Levada para casa, a peça fizera aumentar uma certa vocação alexandrina para a  melancolia, que era, no seu pai, também do temperamento de um moço quase triste, na  Constantinopla que clamava: “Vem! Vem gozar dos prazeres que não são muitos, na vida  cujo minuto passa!”…

Longe desses prazeres, pouco se permitira dormir, na primeira noite, tão próximo da cabeça com o seu sorriso enunciado na pedra — adivinhado no escuro. Podia haver quem a achasse feia, dizia o pai de Abdul-Qadir, mas aquela escultura era, para ele, como a presença de uma estrela apagada, cuja luz secreta viajasse da sala para a sua cama. A cabeça parecia trazer, de muito longe, o rumor de pequenos pés descalços em  pisos decorados e noites de silêncio à margem de um rio esquecido — com apenas o tremor de lâmpadas de óleo em belos mosaicos.

O pai de Abdul-Qadir sentira a influência da cabeça, desde as primeiras horas  debaixo do teto da sua casa. O homem quieto que ele era, não muito impressionável, agora estava ali, numa espécie de paz indiferente, enquanto via crescer uma inquietação nova, indefinida como a fumaça do fumo refletida num espelho de cobre embaçado. Olhava para a pedra calcária esculpida por algum artista remoto, colocada sobre a mesa da sala como se poderia por um gramofone de corda comprado numa feira, a novidade sonora numa tarde luminosa de barcos e gaivotas. Talvez tivesse sido bem melhor comprar um gramofone, com a ópera Aída fanhosamente gritada nuns discos, fazendo ouvir outros ventos e outros barcos numa terra longínqua — que ia se tornando estranha para o pai de Abdul-Qadir. Agora que comprara a cabeça, tinha algumas dúvidas dentro da sua, dormia menos e não sabia onde colocar aquela coisa que perturbava a sua mente, com pensamentos novos.

Não poderia ficar na mesa. Uma circassiana que vinha fazer a limpeza todos os dias, poderia derrubá-la com alguma toalha frenética — e o pai de Abdul-Qadir a espancaria por isso, com certeza. Na verdade, não queria que a circassiana sequer visse a cabeça e, nela pegando com os seus dedos ensebados, censurasse um patrão capaz de pagar para trazer um pedaço de pedra para dentro de casa, enquanto ela não tinha um dote para casar a filha (de modo a que a filha saísse para fora da sua palhoça).

As mulheres do povo batem a roupa e tratam peixe sobre a cabeça dos reis, as grandes coroas deitadas. Só alguns poucos homens se sentem incomodados — e discretamente mudam de assento e voltam para a areia molhada. Os reis, mesmo mortos, têm uma relação misteriosa com os homens murmurando (coisas que as mulheres não compreendem, quando passam com suas crias no braço), ao pé das fogueiras. Os reis perturbam o sono de sapateiros, de tintureiros, dos latoeiros, dos vendedores de chá e até dos engraxates que lustram os sapatos de perfeitas nulidades imponentes, reis do câmbio e do jogo, num tempo em que os Alexandres deveriam ser sufocados ao nascer — para não reduzirem a sua glória ao contrabando de armas e à venda de cabeças sagradas.

O pai de Abdul-Qadir resolveu que levaria a cabeça de volta para a Síria e a enterraria de novo na areia molhada (de qual rio?) e assim se veria livre de perguntas a si próprio… mas não levou avante a idéia, e até pediu perdão, mentalmente, àquela coisa decepada (pelas idéias malucas da sua cabeça de egípcio desterrado).

Um dia, pegando martelo e alguns pregos, arranjou mais uma bela tinta azul no mesmo armazém onde lhe cedeu alguma madeira dos engradados das encomendas, e fez, ele mesmo, uma espécie de caixa pintada (de azul quase negro), onde a cabeça parecia suspensa numa noite de chuva no lago Mareótis.

O pai de Abdul-Qadir fechou a caixinha e nunca mais a abriu… e voltou à sua rotina de negociante, às viagens e aos novos divertimentos, naturais na sua idade (os quais um homem jovem deve satisfazer enquanto é de ouro a luz sobre cabelos fartos; depois… é tarde). E conheceu Azyadée, e casou com ela.

A caixa, com a pequena cabeça, seguiu fechada, quase esquecida na casa, por anos e  anos que rolavam como o fumo dos escuros cigarros turcos por sobre as construções confusas, os balcões de madeira, as lojas apertadas umas contra as outras, no espaço e nos  negócios.

Só muito mais tarde, num dia que os anos trouxeram debaixo das suas muitas dobras, o pai de Abdel-Qadir percebeu que nem sabia mais onde estava a caixinha, na casa ampliada. E entendeu que envelhecera, e que o tempo tinha passado e que as coisas haviam mudado; o seu filho homem tomava caminho próprio, no mundo, e ele mesmo era agora um velho egípcio saudoso do sol alexandrino da juventude, dos dias luminosos que tivera nas mãos, na força dos braços, nos cabelos molhados pela água do lago, lembrando-se de si mesmo na suspensa poeira de uma escada atravessada pela flecha oblíqua da claridade, ele subindo, rápido, seguro, abrindo uma porta que não estava trancada. Lá, recebia, no seu, o calor de um peito que não era o peito farto de Azyadée… que ele também recordava como uma tarde finda, na qual a luz se retardasse — como se uma cúpula de ouro surgisse de todos os abraços que ele podia recordar (era estranho como uma só coisa, com o tempo, podia ser a chave de todas as outras).

Resolveu, então, mostrar a pequena cabeça ao filho, sem qualquer especial motivo — exceto a  lembrança daquela porta no alto da escada, num prédio sem beleza e que escondia, corredores adentro, toda a beleza que havia em Constantinopla, no Egito, na Ásia e na caixa.

Seu pai abriu o escrínio azul de tinta e poeira, e chamou o filho para admirar a cabeça  de pedra calcária, e então…

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho