O velho
Dependurado na cerca, feita com madeiras fracas demais pra agüentar meu peso, vejo ainda que ao redor da casa só há brejo. O brejo fede a esterco macerado na salmoura. Mas nem sempre fedeu tanto assim.
Pensava que após todos esses anos, perdido pelos caminhos, encontraria alguém pra atormentar além de meu pobre avô adoentado.
Ele continua gemendo em cima daquela cama dura de capim trançado. Não há o que fazer, ele só não vem me encontrar porque é cabeça dura. Muito mais do que eu consegui ser.
Paro de ouvir o sofrimento do meu avô, olho para a janela, mas logo depois ouço o soluço desesperado que o velho dá pra não morrer. Ele luta, não sei mais por quê. O azul caiado da parede já está sumindo. Há anos não é renovado, desde que meu pobre avô deitou e não conseguiu mais levantar.
A vida dele, enquanto ainda tinha forças e família, já era um completo inferno. O que será que ele pretende com essa teimosia toda? Já está todo seco e fedendo feito defunto, só lhe falta um velório católico, não em latim, e um enterro decente, em um caixote inteiro, com flores murchas e uma terra seca atrás da igreja, só. Pra morrer não lhe falta nada, basta fechar os olhos.
Mas ele não fecha, ficou até cego. O ar daqui não é bom, ele deveria saber. Não se pode facilitar. O olho ganhou pus, e mais pus, agora está tão seco quanto à pele do infeliz. Mas esse velho desgraçado não fecha.
Eu só queria fumar. Acho que ele também. Velho teimoso! Está aprisionando nós dois nessa casa maldita.
O aterro
Seria melhor pra todo mundo se nunca tivessem construído essa casa.
Aqui não tinha nada, nada que realmente valesse a pena ver, querer ou sentir. Só esse nada de brejo fedido. O único que saiu ganhando com a nossa vinda pra esse fim de destino foi o brejo. Mas não sei o que ele quer de nós. Ele já tem tanto, um nada que tem tanta vida dentro de si. Mas nem sempre foi assim.
Lembro de uma história que aconteceu quando eu tinha seis anos. Ela era a única que conseguia me fazer mijar nas calças, mesmo adulto e casado.
Quando estavam aterrando o terreno que agora sustenta essa miserável casa, muitos dos moradores da cidade tentaram convencer meu avô e meus tios de que essa empreitada não era uma boa idéia, que não daria certo… Sempre diziam isso se benzendo e fazendo essas coisas que todos os vivos fazem.
Meu avô mandava todos para o inferno, pois achava que estavam agourando a construção. Mas isso antes de as mortes começarem.
Eram dois ajudantes, meus três tios, meu pai e meu avô trabalhando no aterro. Não era fácil, eu ainda lembro do estado lastimável que meu pai chegava em casa no começo de noite. Nem sequer se despedia, começava a roncar e babar rapidamente. Eu sempre achei que ele era um bom dum idiota vagabundo, mas ele não precisaria fazer esforço nenhum para que eu achasse isso.
Os ajudantes chegavam antes, como era de se esperar. Já que recebiam pra isso. Depois meu avô. E depois de amanhecer completamente meus tios e meu pai. Todos os dias os sete lutavam para enterrar aquela terra lodosa.
Mas num dia o trabalho precisou ser interrompido, pois quando meu avô chegou ao aterro, encontro os três ajudantes mortos, enterrados até o pescoço. O maldito brejo estava se vingando do que eles estavam tentando fazer.
Meu avô pouco se importou com a vida dos três ajudantes, estava mais preocupado com o tempo que perderia para encontrar mais três homens capazes de fazer aquele trabalho duro.
Não foi tão fácil como meu avô esperava. Os novos ajudantes precisavam de um estímulo para trabalhar em um lugar três vezes amaldiçoado. Por isso, toda sexta-feira era dia de churrasco, meu avô mandava buscar algumas poucas e feias mulheres na cidade, e fazia a semana de todos ser esquecida à base de pinga e safadeza.
Isso até meu avô ser preso.
Os três novos ajudantes descobriram os corpos dos seus colegas enterrados enquanto tentavam aplainar o terreno, que não parava de ceder ao peso da terra. Meu avô, pela segunda vez, perdeu seus ajudantes e uma boa grana, pois o juiz da comarca o obrigou a dar aos pobres coitados um velório digno e um enterro cristão. Até que isso não fosse feito, o aterro permaneceria parado.
Por sorte o juiz não havia mencionado nada de caixões de madeira, e tudo o mais, quando lavrou a sentença. Por isso, meu avô, embora tenha arcado com a despesa das flores e dado seu próprio túmulo aos mortos, pôde ter o gostinho de ver os três miseráveis sendo embolados numa mesma vala.
Até esse pedaço da história, não fiquei impressionado quando a ouvi pela primeira vez, anos depois do esquecimento ser impossível — a lembrança é a melhor maneira de matar o passado.
Mas quando o aterro foi liberado pelo oficial, período em que todas as mulheres da casa e os netos mais velhos tiveram de trabalhar, o brejo começou a expelir sua pior façanha. Sua pior maldição infame. Lembro até hoje de minha mãe chorando no meu ombro, e eu sem entender nada.
Devido à péssima execução do trabalho feito até aquele momento, tudo teve de ser refeito, começando com o reescavamento do brejo.
Como sete sementes de abacate semeadas juntas, sete meninas foram achadas mortas, enterradas no terreno movediço do brejo.
O desespero foi imenso na cidade, não por desconhecimento, mas pelo passado ter sido revelado.
Meus parentes descobriram pouco. O que se soube foi que tudo havia acontecido há umas três décadas. Quando o brejo ainda era um lindo campo que se espreguiçava até o horizonte. Não havia rio e nem árvores, somente relva e uns pequenos animais.
Mas depois que um ermitão desconhecido apareceu na cidade, vestido com andrajos e falando uma língua estranha aos ouvidos de todos, o céu enegreceu e a umidade tomou conta do chão e das almas dos moradores.
Uma a uma, jovens meninas foram sumindo, até que sete noites de lua nova fossem preenchidas. Após a última, durante a quarta-feira de cinzas, uma enorme tempestade caiu, a chuva tinha cheiro de rosas e o gosto se assemelhava a vinho. Animais morreram e foram levados até ao vale pela forte enxurrada, mas nem um único raio caiu. A ninguém foi permitido sair de casa. Por uma semana tudo era mar.
Quando todos puderam voltar aos afazeres normais, foram surpreendidos pelo brejo que não existia antes, mas que parecia vestir os mesmos trapos que o ermitão carregava sobre o corpo.
As meninas
Por muitos anos me desesperei ao entrar nesse brejo, mas agora não. Pra mim isso não faz mais diferença. O que quero é seguir meu caminho. Mas esse velho precisa ajudar.
Por sorte ou por destino, acho que não ficarei sozinho.
Andando lentamente e de mãos dadas, mal tocando o lodo, sete sombras brancas vêm em minha direção. Aceno de leve, não quero assustá-las, mas elas parecem que não me vêem. Parece que estou muito imperceptível.
Somente quando chegam perto da cerca é que me cumprimentam. Os movimentos são lentos, alongados, como se precisassem fazer um esforço imenso para se moverem.
Mesmo não conseguindo distinguir claramente, percebo que cada uma das meninas leva consigo uma corrente amarrada na cintura. As argolas caem suavemente sobre a umidade lodosa do brejo. Elas não falam nada, mas consigo senti-las dizer que se uma delas se soltar, afundará eternamente na podridão.
De certa forma, até que sinto pena. Sinto-me próximo a elas, solidário. Como se me encontrasse na mesma situação.
Meu avô solta um gemido fraco. Penso que este é o último, que após este ele estará acocorado em frente a esta casa, fumando como costumava fazer. Tudo o que eu mais quero é fumar. Velho teimoso, morra de uma vez!
Mas uma das meninas se aproxima e toca meu ombro, como se dissesse “não”. Mas se ele não morre agora, o que é que eu faço aqui?
Fico confuso. Principalmente porque elas alegremente formam um círculo ao redor da casa e começam a dançar ciranda, como se aquela casa fosse um porto, um abrigo para elas.
Esse velho está aprisionando todos nós neste lugar. O que ele pretende? Só pode estar brincando. Consigo até ver um sorriso forçado naquela cara seca.
Por que não nos deixa em paz?! Não sei por que se prende tanto à vida, numa vida que já não sente. Ele precisa seguir seu caminho, o meu já iniciei, mas estanquei aqui nesta casa. Estou preso. Preso como essas lindas crianças também estão.
O brejo
Seis delas sorriem, somente seis. Uma permanece séria, mas não triste. Como se conhecesse mais que as outras. Como se sentisse mais.
Como se quisesse responder meus questionamentos, ela me olha fixamente com os olhos negros da revelação.
Então, leio nos olhos dessa mais franzina das sete meninas, que meu avô não morre porque o velho brejo não permitirá.
Estamos todos presos aqui. Juntos pela beleza do brejo.