O legionário Mânlio empurrou a grossa porta ogival, que rangeu pesada nos batentes. O prisioneiro estava agachado num canto da cela. Com pedaço de carvão traçara na parede o desenho de um peixe, símbolo dos cristãos. Ali parado, apoiado na lança, Mânlio nada disse e Amos compreendeu. Ergueu-se devagar, um misto de medo e estranha determinação nos olhos. O romano sentiu confusos sentimentos em relação àquele homem ainda jovem, a vontade de ter raiva mesclada a pena e até uma ponta de admiração. Estendeu a corda para amarrar-lhe as mãos mas Amos sacudiu a cabeça, não era necessário. Dedos entrelaçados à frente do corpo, lábios trêmulos balbuciando uma oração, começou a subir os degraus de pedra, seguido um passo atrás pelo legionário.
Muito pálido, olhar fixo à frente, o preso, mãos atadas às costas, galgou o último degrau da escadaria. “Por aqui”, disse Diogo, que o escoltava, orientando-o a tomar à direita do corredor. Nos meses de calabouço a barba e o cabelo de Mika cresceram desordenadamente, davam-lhe aparência selvagem. Diogo mais de uma vez conduzira o prisioneiro de sua cela até a câmara de torturas mas, segundo se comentava, o herege em nenhum momento fraquejara, nem mesmo quando lhe arrancaram as unhas.
No fim do corredor, o grupo que os aguardava tinha à frente o dominicano Henrique, juiz do tribunal. O frade estendeu à frente o crucifixo, num gesto teatral: “Meu filho, ainda há tempo, salva a tua alma. Beija o crucifixo”, gritou. Mas o prisioneiro passou reto, sem se dignar sequer a olhá-lo. O jovem Diogo sentiu um arrepio de frio, embora o suor lhe escorresse das axilas.
Saíram no pátio calçado. A manhã estava fria, brumosa. O Visconde de Beauharnais deteve-se um segundo, inspirou fundo, como se quisesse absorver com todas as forças aquele último hausto de vida. Jean-Paul, no comando dos sete mal ajambrados soldados republicanos, deteve-se respeitosamente e temeu, como se por ele próprio, que o aristocrata fosse fraquejar. Mas o Visconde retomou a marcha em direção ao portão, passo firme, a cabeça levantada.
O pequeno grupo atravessou o portão. O orvalho do campo molhava as botas dos soldados. Wang olhou em torno e pensou, as macieiras estão começando a florir. Apesar de tudo a China é bela e foi bom ter vivido aqui. Marchavam em passo firme. O sargento Gong procurava não pensar, ouvindo o rangido das botinas no saibro e a música dos cantis ao roçarem nos cinturões ou ao baterem ocasionalmente de encontro à coronha dos fuzis, pendurados do ombro a tiracolo. Mas não cessava de se repetir mentalmente, “eu não gosto disso, eu não gosto disso”. Se se tratasse de um invasor japonês, talvez não se sentisse assim agoniado; mas um chinês, como ele! O estudante era, tinham lhe dito, comunista. Mas será que, apesar disso, merecia morrer tão jovem?
Sim, estava fria aquela manhã em Varsóvia, pensou o sargento Wolf. Na verdade ele tentava não pensar, enquanto deixavam a estrada. Percebeu o quanto estava tenso pela força com que apertava o cabo da metralhadora.
Samuel, à frente, mortalmente pálido, mexia os lábios, dizendo suas orações. Apesar de judeus, tinham mostrado, era preciso reconhecer, coragem na defesa de seu gueto; quantos dias de combate desigual! E pareceu-lhe de repente que teriam o direito de ser tratados como prisioneiros de guerra. E teve vontade de lhe dizer em alemão, “olha, eu não gosto disso, mas não posso fazer nada. Estou apenas cumprindo ordens”. Mas nada falou, ouvia-se apenas o rangido das botas sobre o cascalho e dos cantis que pendiam dos cintos.
O sol saíra, a manhã estava insuportavelmente quente. O grupo deixou a trilha e atravessou o campo, em direção ao capão de mato. O sargento Evans estava contente de deixar para trás os gritos de desespero da gente da pequena aldeia, iniciados assim que seus homens arrastaram Chou-li de dentro da choça, logo após incendiada.
Tentou olhar com ódio o pequeno homem oriental de mãos amarradas que caminhava à sua frente; mas tudo que conseguiu sentir foi uma náusea muito grande que o invadiu das profundezas. Não posso fraquejar, pensou, preciso dar o exemplo. Os homens caminhavam calados a seu lado. Chou-li era informante do Vietcong, não podia deixar de ser justiçado. Mas Evans sabia que Wang devia lealdade a seu povo, não ao homem branco de língua incompreensível. Pensou que o pai a essa hora já devia estar montado sobre o trator, chapéu protegendo do sol a cabeça branca, arando a terra da fazendola deles em New Jersey, enquanto na cozinha Mary talvez preparasse aquele bolo de nozes que ela fazia tão bem. E toda a realidade em volta lhe pareceu de repente totalmente estranha, irreconhecível, como se fosse personagem de um sonho absurdo e mau. Mas a roupa ensopada de suor de Chou-li, o cheiro acre do medo que emanava de seu corpo, lhe dizia que não, infelizmente não estava sonhando.
O grupo entrou no capão e o major Bento não conseguia tirar os olhos da nuca do prisioneiro de mãos amarradas às costas. O guerrilheiro Carlão, que tanto trabalho lhes dera, que já começava a se tornar uma figura lendária às margens do Araguaia, agora ali estava, à mercê deles, depois de uma combate em que só pudera ser capturado depois que sua munição se esgotara. “Sinto muito Carlão, você é um homem valente. Pena que não estivesse do nosso lado” — o major surpreendeu-se ao ouvir a própria voz, como que derivada de um comando autônomo. Carlão, ensopado de suor, roupa em trapos, respondeu com a voz grave e rouca: “Não me arrependo de ter ficado ao lado do povo, contra os exploradores e a ditadura.”
Quem passasse pela estrada poeirenta não poderia ver aquele pequeno grupo oculto pelo tufo de árvores. Mas poderia ter escutado o tiro que ecoou no silêncio da manhã, cortado apenas pelo cantar dos pássaros. Um único, solitário tiro.