Um resto de infância

A Mara era o máximo. Sempre que Matheus pedia, ela dava seu jeito.
Ilustração: Theo Szczepanski
01/12/2015

A Mara era o máximo. Sempre que Matheus pedia, ela dava seu jeito. Quando o menino queria doce, erguia as sobrancelhas, receosa, pois a mãe do menino havia deixado clara a ordem de que ele não deveria comer doces. Mara nem entendia, se todo mundo come doces, mas com patroa nem se discute.

O que não era doce, ela dava um jeito.

O oitavo verão do menino andava quente. O apartamento fervia e a família toda, seus pais e sua irmã, se viam ansiosos na espera de dias mais frescos. Matheus, no entanto, não contava as horas pensando no clima. Fazia mais de dois meses que olhava pela janela a quadra de cimento da praça, e não conseguia conter a vontade que lhe afligia a alma ou aquele peito de criança, queria ir lá chutar umas bolas. Estava interditada, pintura das linhas e conserto de dezenas de buracos, a maioria deles nascidos das incansáveis solas do menino quando lá pisoteava pelas tardes.

Ele estava de férias das professoras e das provas, dos amigos, que sentia falta, e dos inimigos, das outras salas, coisa que o deixava alegre. Acordou tarde, a mãe o puxou para o almoço, os pais discutiram sobre umas coisas que ele não entendia e, logo que regressaram ao trabalho, Mara veio vindo, ele esparramado no sofá. Matheus, dizia ela, você viu que a quadra tá funcionando?

Correu até a janela e sim, uma bola voava entre os pés e mãos de umas crianças. Com um sorriso que brotava por antecipação da resposta que supunha ouvir, piedosamente pediu. Foi o tempo de ela encher uma garrafa de plástico de água, logo Matheus já chutava suas bolas sob a vigilância da empregada.

Mara não estava infringindo leis de casa nem nada; mesmo a patroa, que desgostava daquela praça e acelerava os pés a cada homem de rua, arrastando o filho e concordando como se o escutasse, mesmo ela, descia às vezes, quando Matheus insistia até não mais dar. Tendo em conta que a mãe do garoto às vezes cedia, Mara afastava qualquer princípio de paranoia e descia do prédio com Matheus.

— Matheus, você não tem medo não, não é?

— Medo? — o menino até riu, não entendeu a pergunta.

Mara também riu, engraçado, a mulher crescida é quem tem medo da rua.

Lá embaixo, não tardou até que os outros garotos cansassem.

Matheus, no futebol, desde sempre, incansável.

Logo que ficou sozinho na quadra, o berro pelo nome de Mara. Ela gostava de vigiar o menino enquanto sentada no banco, no entanto conhecia o roteiro. Era sua vez de ser goleira.

Ele, imperdoável, cadarço firme e chutes, enlouquecido para fazer a bola passar. Ela ria, e quando a bola vinha forte, protegia-se encolhendo o corpo, numa típica risada de perigo pequeno.

Mara em pouco tempo estava ofegante, apoiada na trave. Já tinha quase quarenta, aquele menino dava uma canseira. Impaciente, Matheus dizia de tudo, tentava com toda sua habilidade de criança manhosa convencer aquela sua empregada a manter o posto entre as traves, desconsiderando com desdém os suplícios esbaforidos dela, quando dizia que não dava, que o cansaço era tanto. A grade enferrujada rugiu e veio vindo um homem de laranja, mais velho que a empregada. Ele e Mara se entenderam, disse que havia reparado nela, apoiada cansada no poste, e perguntou se podia tomar o lugar.

Bastou uma imagem para que Matheus iniciasse os bombardeios: o homem de laranja foi até o gol e num movimento teatral, colocou o corpo pesando sobre os joelhos flexionados e sorriu, vamo vê se é bom de bola, disse, provocando o garoto.

Dos adversários que até então teve, aquele era um dos mais velhos, perdendo apenas para o avô, que era muito velho, mas que mal e mal valia na contagem, já que entrava na quadra em demorados passos apenas para brincar, não ia no gol nem nada. O de laranja era mais vivo. Matheus correu, chutou, preocupou-se quando a bola demorava a entrar e vibrou com os pulsos ao ar a cada bola endereçada.

Um outro homem de laranja assobiou e o goleiro saiu às pressas, rindo do menino, que abriu os braços pedindo por explicação, a bola já estava posicionada para a bica e tudo.

Chutou por mais uns instantes sozinho, sem ver muita graça e subiu ao lado de Mara, pingando suor no piso do elevador.

— Viu todos os gols que eu fiz no goleiro de laranja?

Mara, rindo.

— Vi todos, Matheus.

Enquanto cortava a cebola do jantar, antes do final do expediente, Mara pensou por uns instantes. Viu uma dúvida. A patroa ergueria as sobrancelhas de brabeza ou nem se importaria se soubesse que seu filho jogou bola com gari?

No ônibus pra casa, nem lembrava mais de dúvida qualquer em relação aos patrões.

Um abraço de tchau a contragosto no pai, ele suava, a camisa molhada, e em poucos minutos depois do almoço, com a casa livre, olhou Mara e a cumplicidade dos dois já dispensava palavras.

Ela cansou-se rápido, até bebeu uns goles escondidos no gargalo da garrafa do menino.

A solidão dentro de uma quadra, até hoje, era a maior tristeza de sua vida de menino. Restava a ele as grades, em direção delas chutava e quando uma quina mandava a bola para longe, sentia a desgraça de não ter ninguém para jogar.

Brilhando entre troncos e folhas um ponto laranja foi surgindo, atravessando a praça.

Logo a grade enferrujada soou e o gari se colocou a postos, pronto para defender.

Pela intimidade que já tinham neste segundo dia, o gari não se conteve apenas com as mãos; fez o menino correr e pular. Quando enfiava bola alta, Matheus se abaixava para ganhar impulso. Ele se viu numa novidade imensa, quando que um urso daquele porte chutaria tendo ele, não tão grande, no gol?

Mara e gari se entendiam, volta e meia ele olhava para ela, como se precisasse de sua aprovação sobre a força dos chutes, que às vezes brotavam mais fortes de seu pé direito.

Contudo, quem exagerou foi Matheus. A cinco passos do gari, a bola quicando e o pé de menino sem explicações se esticou com força e na angulação exata, uma bola na boca do goleiro. Matheus nem ligou, um homem daquele tamanho nem sente. Continuaram com os chutes e o gari levando a mão à boca, um gosto de alerta. Nada de mais, não ardia nem nada, mas ver o vermelho sair nunca passa despercebido. Enquanto chutava e olhava a mão e o pouco de sangue, uma mulher com um cachorro passou pelo lado de fora e pensava, como pode o gari colocar essa mão de gari na boca, ela é suja.

Mesmo assim, se divertiram. Mais ainda do que no outro dia. O outro homem de laranja, o mesmo do dia anterior, deu um assobio agudo e o goleiro saiu depressa. Matheus agora sabia que aquele definitivamente era o juiz.

A vinte quilômetros dali, horas depois, a mulher recebeu o marido com um beijo apaixonado. No calor ficava mais quente, e mordeu o lábio antes de se desprender. Ele deu um berro, disse que havia cortado no serviço, no almoço, com um garfo de plástico afiado. Mentia a ela, assim, ocasionalmente, quando antecipava uma bronca longa; ela era mulher séria, braba e ordeira, e não gostaria de ouvir que ele andava chutando bola na pausa do almoço.

A mãe de Matheus mal ouvia o menino contar sua história, queria que ele comesse o que tinha no prato, mas ele não se segurava. Eufórico, olhava o pai e a avó, contando sobre seus gols, sobre um goleiro de laranja, e que ele deu um chute e acertou na cara dele. Os pais e a avó até riram. Sua irmã não.

— E você tá rindo e machucou alguém! — reclamava a menina mais velha.

— Ele não se machuca, é muito grande, tonta — Matheus disse, como se a outra pouco soubesse da história ou de futebol.

A mãe interveio. Braba, mandou que não chamasse mais a irmã de tonta.

Matheus, cabisbaixo, terminou o jantar e ficou olhando aquela praça, a quadra iluminada pela lua. Era mesmo grande aquele homem, e grande ele, que fazia gol naquele gigante.

Como se lesse a cabeça do menino, a avó foi ao seu lado na janela, disse que sexta-feira era feriado e ia convencer sua mãe a irem os três, vó, mãe e neto, passar o dia na cancha.

— De verdade?

— De verdade — garantiu a velha.

Dormiu sonhando, chutes e gols, laranja.

Sua mãe entrou na cozinha enquanto Mara terminava os últimos detalhes do almoço.

— Nossa, Mara, tá um calor insuportável aqui, não sei como você aguenta.

Mara apenas riu, suando, cortava couve.

— Viu, como que tá o Matheus esses dias, ele contou do futebol, você tem levado ele na praça, né?

— De vez em quando sim, ele fica maluco com a quadra, a senhora sabe.

— É, ele gosta. Agora, das pró… Abra essa janela pelo amor de Deus. Isso. Enfim, cuide bem, porque essa praça anda muito perigosa, é um absurdo, cheio de bandido e mendigo que tá louco.

A empregada disse que cuidaria e a mãe de Matheus foi simpática, sorrindo, e na cabeça de Mara nunca ficava bem certo, a patroa oscilava em segundos, de patroa despreocupada e sorridente a patroa ranzinza, autoritária, a ponto de Mara lavar os pratos com o olhar longe, duvidosa, quem errou foi eu?

A preocupação com a cautela se dissipou logo nos primeiros chutes. Mara sentada, o vento batia pelo banco e os pássaros pelas árvores. O barulho dos chutes de Matheus e as defesas do gari. Nada mais. Credo, preocupação só pode ser coisa de patrão, pensava.

O juiz apitou e lá corria o goleiro, sorrindo ao menino e à Mara, segurando seu boné de pano laranja contra o vento enquanto corria para retornar ao expediente, para deixar a cidade mais limpa.

Sexta-feira, um cheiro estranho. O menino foi se dar conta de que era feriado, e quem estava encarregada do almoço era sua mãe. Ele preferia a comida de Mara.

O menino almoçou distante, pensando no futebol. Não ouviu o pai reclamar do excesso de sal, a avó criticar uma prima que morreu, mas nem por isso foi ao enterro, nunca se deu bem com aquela parte da família. Tampouco viu a mãe chateada, e o pai, que pouco encostou no prato como protesto às tentativas da esposa na cozinha.

A avó e a mãe lavando pratos. Matheus cutucou a avó na esperança de que fosse suficiente para recordá-la do combinado. A velha não entendeu o puxão. Depois de explicar, ah sim querido, vamos sim e vamos já já.

Para a mãe de Matheus, era um sacrifício descer até a praça. Não bastassem os dias úteis, os trajetos de ida e volta até o trabalho, em que não raramente olhava aquela praça e calculava as entradas e saídas do dinheiro que não era ainda suficiente para a troca de bairro, tinha agora que compactuar com a mãe, obedecer a um combinado feito por ela com o filho que era seu, não dela.

Mesmo assim, rendeu-se.

Matheus colocou a mãe no gol, depois a avó, e em minutos estava sozinho, chutando bola nas grades, numa terrível solidão, mas se divertindo quando a quina da grade não lhe passava a perna. Mãe e filha sentaram-se no banco a metros da cancha, desde que a moça casou, nunca houve minuto de silêncio, tinham sempre papo a pôr em dia. Veio vindo o gari, em passos rápidos entrou e cumprimentou o menino. Começaram a jogar. O gari, performático, fazia graça. O menino sorria, fazia gol e comemorava. Num destes berros foi que mãe e filha finalmente notaram.

— Quê que é isso? — perguntou, depois de um susto, a avó.

As sobrancelhas da mãe também se ergueram. Pensaram em interromper aquela cena incoerente, um gari jogando com o Matheus? As espectadoras foram aos poucos se tranquilizando. O gari parecia ser calmo, e o menino vibrava com furor. A mãe, colocando a cabeça em uso, se deu conta. Era aquele o goleiro de laranja. O gari parece calmo, tudo bem, mas segunda-feira iria dar uma razoável prensa em Mara, não é assim, sem mais nem menos, que se deixa meu filho numa mesma quadra com um gari. Passaram uns minutos, o papo das duas foi restabelecido com a despreocupação. Entre os dois gols, Matheus e o gari já se conheciam como adversários. O menino punha, em sequência, de dois a cinco chutes, e então o gari dava o dele, cada vez mais mirando o gol, sem tanto temer o fato de ser criança o goleiro do outro lado. A bola bateu numa quina e veio rolando, vagarosamente, Matheus dando curtos e ágeis passos, ganhando força, um belo chute que cruzou a linha. O gari também queria fazer um gol e a bola pingou, uma, duas vezes, o pé voou e graças a Deus o menino não usava óculos; foi ao chão, o gari correu, um berro alto. Poucos são os meninos daquela idade que barram o choro, ele até quis se segurar, o chute foi forte mas nem tanto. Sua pequenice não o permitiu e ele entregou-se a um choro soluçado. O gari, agachado, tentava consolar o menino e ver seu rosto, pedia que tentasse abrir os olhos, pedindo por desculpas. Ele ouviu berros de mulheres e quando virou para trás, uma mulher e uma senhora idosa corriam descarriladas para dentro da quadra de cimento, berrando o nome daquele menino e depois indo ao chão, ao lado do pequenino, acariciando sua testa molhada de lágrimas e com os quatro olhos em chamas ao gari. A mãe o xingou de irresponsável, delinquente, onde já se viu um homem daquele tamanho querer chutar a bola numa criança. O homem tirou seu boné de pano e, encolhido, pedia por desculpas, queria dizer mais, mas faltavam-lhe palavras para se lamentar, era a última coisa que queria, acertar o menino. O choro do menino tornava-se mais brando, e, do colo da mãe, ele olhava aquele homem grande, com um ar de repreensão, ele, que estava no colo de sua protetora. A mãe não diminuiu o tom de voz e a avó, que durante toda a encrenca fitava fulminantemente o gari, soltou sua voz rouca, disse que gari tem que trabalhar, ele que saísse já dali. Pensou em se conter.

— Saia daqui, seu vagabundo.

No resto daquele verão e daquela infância, goleiros de laranja nunca mais voltaram.

 

Daniel Hey

Nasceu em Curitiba (PR), em 1992. Escreveu roteiros para curtas e longas-metragens. O conto Um resto de infância integra o livro de estreia Terra onde frustração dá em árvore sonhar é crime, a ser lançado em breve pela 7Letras.

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