No final de fevereiro, sendo brasileiro e afeito aos nossos desusos e maus costumes dos políticos, principalmente em relação à cultura, tive uma grande surpresa. Anunciava-se que a 18ª Correntes d’Escritas em Póvoa de Varzim, a 20 quilômetros do Porto, seria aberta pelo presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa. Duvidei. Vem? Um presidente? No Brasil, nunca em tempo algum vi um presidente aparecer em acontecimentos literários. Na abertura da Bienal do Livro de São Paulo, 2016, Michel Temer, que se diz poeta, preferiu não aparecer, com medo de vaias e solicitações de FORA.
Então, ali estávamos e o presidente português chegou, abriu a cerimônia, sentou-se e almoçou tranquilamente com os 83 escritores convidados e as chamadas demais autoridades, entre eles o ministro da Cultura, Luis Filipe Castro Mendes. Ao final, sem atropelo, formou-se uma roda em torno do “homem” para uma foto. Não havia lugar para mim no círculo e o fotógrafo Daniel Mordzinski, instintivamente puxou uma cadeira e colocou-a bem na frente do doutor Marcelo. Sentei-me e fiz minha selfie presidencial. Sou o único sentado. Quanto a Daniel, personagem singular, é conhecido no mundo como o “fotógrafo dos escritores” e circulou em Póvoa o tempo inteiro, câmera na mão. Seu livro, A literatura na lente de Daniel Mordzinski, celebrado no Brasil, e lançado pela editora Sesi-SP, infelizmente não chegou a Póvoa, para grande frustração do autor e de todos nós, que esperávamos um lançamento animado.
“As Correntes, começaram em 2000 — centenário da morte de Eça de Queiroz — e a ideia foi fazer um festival que juntasse escritores de todos os países de língua portuguesa e de língua espanhola (incluindo catalã e galega), dos vários continentes”, explicou-me José Carlos Vasconcelos, diretor do quinzenário Jornal de Letras — que inveja, falta-nos isso — anfitrião, um dos colaboradores e constante divulgador das Correntes. “Não havia cá nenhum com essas características, e ele foi crescendo até se tornar, como o presidente da República disse há pouco na abertura, o principal ou o mais importante de Portugal. Há um núcleo de meia dúzia que participa desde o início — espécie de escritores ‘residentes’. Alguns que já vieram várias vezes, todos os anos sempre bastantes pela primeira vez, e a estrutura da organização é a que viste, tendo tido progressivamente coisas novas.
“Da África já estiveram todos os principais escritores (lembro-me de um ano em que se juntaram aqui em Póvoa, de Angola, todos mesmo, de uma só vez, o Luandino, o Pepetela, o Ruy Duarte Carvalho, o Agualusa, a Ana Paula Tavares, o Ondjaki, o Manuel Rui, o João Melo — em Angola mesmo nunca devem ter estado juntos sequer metade deles), de Espanha e da América Latina muitos deles. Do Brasil, por exemplo, que agora me lembro, o João Ubaldo Ribeiro, Antonio Torres, Nélida Piñon, o Luis Fernando Verissimo, o Zuenir Ventura, o Moacyr Scliar, o Ivan Junqueira, o Antonio Cicero, o Bernardo Carvalho, o Martinho da Vila, o Eucanaã Ferraz e outros mais novos, etc. — e, glória maior, porque no Brasil nunca aparece, o Rubem Fonseca, e este ano a Tatiana Salem Levy e você.”
Para se ter ideia do que foram as Correntes nestes anos, basta dizer que foram mais de mil intervenções de escritores — a maioria com os auditórios a rebentar pelas costuras, como se diz por aqui. E muitos participantes, como editores, críticos, agentes literários, jornalistas, professores e, claro está, leitores. Mais de 50 mil leitores passaram pelas variadas ações que constituem o programa: conferências, mesas redondas, lançamentos de livros, sessões de poesia, teatro, cinema, encontros de escritores com estudantes, entregas de prêmios, disputadíssimos. Realizaram-se mais de 150 mesas redondas e cerca de 170 sessões com jovens estudantes. Lançaram-se mais de 300 novos livros e fizeram-se mais de 40 sessões de poesia.
Segundo o português Rui Zink, “as Correntes tornaram-se o património cultural vivo da península ibérica”. Hélia Correia, Prêmio Camões 2015, com quem dividi mesa neste ano, foi objetiva: “Correntes? Uma improbabilidade, um verdadeiro milagre”. Já a combativa Inês Pedrosa, que tem vindo repetidas vezes ao Brasil, não deixou por menos: “Um exemplo de persistência onde o convidado se sente, simultaneamente, acolhido e livre”. Agora, uma escritora especial, amiga particular há 35 anos, Lidia Jorge: “O que faz a singularidade destes encontros em Póvoa de Varzim é acima de tudo o modo singular como as Correntes se processam, o ritmo que os seus organizadores lhe imprimem, com a noção do que é literário. (…) Talvez esse seja o segredo do êxito. A certeza de que em chegando fevereiro, numa cidade portuguesa à beira do Atlântico, pelo menos durante uma semana, um pedaço de utopia é possível”.
Não esqueço uma coisa importante, os quatro prêmios que as Correntes atribuem a cada ano: O Casino da Póvoa para prosa (anos pares) e poesia (anos ímpares), no valor de 20 mil euros (cerca de 70 mil reais). O Correntes d’ Escritas Papelaria Locus (conto — anos pares; e poesia — anos ímpares, para jovens entre os 15 e os 18 jovens). O Conto Infantil Ilustrado Correntes d’ Escritas Porto Editora. O Fundação Dr. Luís Rainha Correntes d’ Escritas.
As Correntes são um tsunami literário que acontece com logística impecável, coordenada por Manuela Ribeiro e uma equipe, que tem o dom da ubiquidade de Santo Antônio, o de estar em todos os lugares ao mesmo tempo. Entre 21 e 25 de fevereiro, o Cine Teatro Garrett superlotava de manhã à noite. Nas dez mesas, cada uma com cinco autores, criavam-se debates em torno da palavra, apoiando-se no poema de Armando Silva Carvalho, A sombra do mar. Minha mesa, partilhada com Eugenio Lisboa, Hélia Correia, Mario Claudio e Valter Hugo Mãe, com mediação de José Carlos Vasconcelos, editor do Jornal de Letras, girou em torno do último verso de Carvalho: “e as insistentes palavras parecem desistir enquanto avançam”. Exercício de criatividade ao vivo diante da plateia.
Memória afetiva em Póvoa. Uma delas veio certa manhã, quando José Carlos Vasconcelos me conduziu por vielas de fachadas azulejadas até o prédio que tinha sido o Hotel Luso-brasileiro. Ele apontou para o busto de um homem de bigodes amplos e cerrados. Explicou: “Aqui entre 1873 e 1890 Camilo Castelo Branco, frequentou o Hotel Luso-brasileiro”. Apontou para outro edifício: “E ali, onde foi o Café Chinês, ele, apaixonado por uma bailarina espanhola, perdia no jogo tudo o que ganhava com a literatura, vivia arruinado”.
No mesmo instante me vi, a 20 mil quilômetros e a 65 anos de distância, olhando para centenas de volumes vermelhos da biblioteca municipal de Araraquara, as obras completas de Camilo, lembrando o desafio famoso, feito pelo bibliotecário Manai a todos que ali entravam: quem enfrentará o autor de Amor de perdição de cabo a rabo?
A aposta foi ganha por Sergio Fenerich que a cada dois dias levava um exemplar, passava a noite lendo, de modo que em dois meses tinha atravessado todos, um a um. Ficou famoso naqueles anos 1950, o único a cumprir a tarefa. O professor de português, Jurandyr Gonçalves, nos contou a existência atribulada, aventureira, livre, desesperada, erótica, de Camilo, personagem dostoievskiano. “A vida dele foi escrever, escrever, sua única salvação, tormento, sonho”, disse Jurandyr. Aquilo marcou-me como tatuagem.
Soube também que na Póvoa, Camilo dava-se com o pai de Eça de Queiroz, com Almeida Garrett e Alexandre Herculano. Ora, desde criança eu via a coleção das obras de Herculano nas estantes de meu pai, leitor inveterado, cultor da boa linguagem. Só havia um senão para o velho Brandão: “Esse homem escreve tão bem, pena ser tanto contra os padres e a igreja”. Católico, meu pai era, contudo, liberal.
Agora, ali estava eu nesta cidade antiquíssima, no norte de Portugal, vizinha ao Porto, balneário, cidade de pescadores, que tinha abrigado a construção naval na época das descobertas. Poveiro, povo orgulhoso, forte. Ah, aqui nasceu Eça de Queiroz, que tem sua estátua na Praça da Câmara, onde, aliás, nasceu. Foi um português, o Machadinho, professor de Química e de Português, quem nos revelou Eça ainda no colégio. Ele começou por nos excitar com a questão da mãe do autor, mulher que que teria dado à luz antes de se casar, um imbróglio considerável para a época.
Até hoje, ninguém esqueceu a gargalhada estentórea, voluptuosa e irônica de João Ubaldo Ribeiro e a sua presença imponente. Desta 18a Correntes trago o riso esfuziante de Inês Pedrosa, a alegria por reencontrar Almeida Faria, amizade de 40 anos, belíssimo escritor (Tomara O conquistador tenha chegado às livrarias brasileiras), o estar com Rui Zink. Com Valter Hugo Mãe e Vasco Rosa a conversa rolava pelas madrugadas no restaurante vazio do Axis Wermer, a nossa mesa única a manter a luz acesa, e nós embalados por uma aguardente velha dourada. Valter passou voando, ia para a Polônia no dia seguinte, homem do mundo.
Se fui a Correntes, devo a José Carlos Vasconcelos, onipresente, o homem de vasta cultura, jornalista a vida toda, pessoa que lida, como ele diz, “há 60 anos com estas coisas de cidadania cultural”, tendo recebido o Prêmio Vasco Graça Moura, pela sua “exaustiva persistência na imprensa portuguesa de âmbito cultural”. Poeta, autor de Corpo de esperança, Repórter do coração, De poema em riste. Nascido em Freamunde, José Carlos porém, acentua, “aquela é a minha terra, onde nasci, e Póvoa de Varzim é a minha terra, onde não nasci”. Desta maneira, se diz autêntico “poveiro”. Sabe mais do Brasil e dos nossos meios literários que muito brasileiro bem informado. Promove nossos escritores e livros. Batalhou pela minha ida, como procura sempre incluir brasileiros em eventos portugueses. Que retribuição nosso país dá a pessoas como esta. O conceituado Jornal de Letras, quinzenal, que ele edita, lembra muito o formato deste Rascunho e sua maneira de encarar literaturas, autores e editores.
Quero compartilhar uma declaração de Mia Couto: “Nós que visitamos a Póvoa assumimos que uma vez participado nos parece afirmado, sem pestanejo, que estaremos sempre lá, em toda a edição que houver”.