Um paraibano no Rio

Conto extraído do livro Feias, quase cabeludas, de Haroldo Maranhão
Haroldo Maranhão, autor de “Feias, quase cabeludas”
01/10/2005

Veio de muda para o Rio. Procedência: Paraíba. Dias depois chegava, por via aérea, o seu Volkswagen. Foi muito amável com o colega burocrata, de quem se fizera logo amigo:

— Agora você tem chofer às ordens. Eu moro na Constante Ramos, você na Barão de Ipanema, saímos sempre à mesma hora… Está para você.

O outro agradeceu, mas alarmou-se. Um paraibano solto nas ruas do Rio, imiscuindo-se no tráfego maluco, pareceu-lhe perspectiva nada confortável. O homem é louco, meter-se entre ônibus, lotações, como é que vai ser?

No dia seguinte, soube que o amigo fora ao Galeão apanhar o automóvel; veio pela Avenida Brasil sabe Deus como, deixou o carro num posto para lubrificar, abastecer, lavar, apertar umas coisas, mudar o farolete que a viagem danificara.

— Amanhã o carro está pronto. Vai ficar em ponto de bala — informou o jubiloso e insensato proprietário.

O amigo, com jeito, procurou demovê-lo do suicídio. Você ainda não pensou, o negócio aqui é de lascar, sabe, lá em João Pessoa o ritmo do tráfego é de valsa vienense, aqui é na base do cool-jazz, você não acharia melhor entrar numa escola para motorista?

— Escola? Isso é gozação ou o que é? Olha, meu filho: eu dirijo na Paraíba há mais de um ano e o meu carro está aí pra você ver. Não tem ferida.

— Eu sei, eu sei. Fica o dito por não dito. Aliás nunca duvidei dos seus merecimentos. Apenas aqui a coisa é um tanto grossa.

Em casa comentou com a mulher: não sei como vai ser, tem um paraibano querendo me dar carona depois do serviço. O homem está cru, cheirando a João Pessoa. É um maníaco, só pode ser maníaco, quer suicidar-se e achou de me assassinar sem mais nem menos.

Passou a inventar as desculpas mais imaginosas. Você não sabe, hoje é meu dia de dentista, tenho um encontro na livraria, vou ter de arranjar uma lâmpada para minha geladeira, apareceu um galho para eu quebrar no Ministério da Saúde, minha sogra pediu para pagar o aluguel do apartamento, vou a uma conferência do Deputado Brizola.

Não era nada disso; saía direto para pegar ônibus no Castelo.

Uma tarde, estava justamente na fila quando freou a seu lado, no meio-fio, o fatal carro nordestino. Escutou a voz amiga, que, entretanto, provinha do cemitério:

— Como é? Hoje você vai debutar no meu vermelhinho.

Não havia possibilidade de evasão; resistir, quem há de? Embarcou. Lívido.

O impressionante homem arrancou como um tufão, embrenhou-se na selva metálica, ligou o rádio, contou uma anedota, e ria, ria, os nervos penteados à gomalina, num à-vontade de pasmar.

Pronto, daí por diante ganhou confiança no chofer e desertou da fila comprida de todo dia, então para nunca mais.

Ultimamente, parece que se inverteram os papéis. O denotado paraibano de vez em quando se esquiva ao inflexível carona, hoje é hora marcada no médico, ontem foi falar com o Senador Rui Carneiro, tem porque tem de ir à Caixa Econômica, é o sogro que precisa receber um amigo no aeroporto. Coisas assim.

Haroldo Maranhão
Rascunho