Estêvão resolveu um dia se tornar o maior performista do mundo. Estava cansado de ser pintor, carreira que abraçara com paixão havia cinco anos, mas que não trouxera os resultados esperados. Todavia, em vez de dinheiro, desejava celebridade, prestígio, glória. Pois de riqueza não carecia, porém de consagração sim: nasceu numa família carioca abastada, residente há tempos num tríplex da Avenida Rui Barbosa, fronteira entre a Praia de Botafogo e a do Flamengo, vista cinematográfica para o Aterro e a Baía. Vivenciou o tédio que uma criança burguesa sofre, cheia de mimos, com babás e serviçais em abundância, todos negros e mulatos, tal como se vê nas telenovelas exportadas mundo afora ou nessas gravuras retratando o Rio do século XIX — a família branca sendo cortejada por seus nem sempre bem tratados escravos. Ele conhecia perfeitamente tais imagens, sobretudo aquela de Debret, em que uma senhora luzidia, de opulenta estirpe lusitana, dá de comer a um garotinho, futuro servo, como se cãozinho fora.
Não ficava abalado com essa cena tipicamente brasílica, mas se comovia com a beleza plástica das representações do genial francês. Pois muito cedo Estêvão decidiu ser pintor, para grande desgosto da família. Por se tratar do primogênito, o pai o imaginara como o futuro presidente da indústria de tecidos, assumindo o posto que antes fora do bisavô, do avô, e dele mesmo, o pai, numa nobre sucessão patrilinear. Para piorar as coisas, era o único filho homem, tendo apenas uma irmã. De nada adiantou a pressão, Estêvão bateu pé, dizendo que seria pintor ou então abandonaria o ninho antes mesmo que toda a plumagem tivesse se formado em seu frágil corpo, habilitando-o ao voo. A natureza tem caprichos assim, era relativamente franzino, a despeito da corpulência de todos os patriarcas que o precederam.
Devido à determinação do rapaz, a família teve que ceder e começou a preparar a filha para o trono, pois felizmente esta desde cedo demonstrou ser dotada da disposição para manter e gerir o patrimônio familiar. Alguns desconfiavam que ela nasceu menina-homem, coisa que nunca foi provada, apesar das roupas viris que desde criança gostava de vestir. Tinham os dois irmãos apenas um ano de diferença, mas ninguém poderia imaginar indivíduos mais desiguais — uma, a figura da força em miniatura, o outro, um protótipo de homem que, suspeitavam, nunca daria certo. A ver.
Diz certa lenda inglesa da Idade Média, de inspiração celta, que o destino é inexorável: o indivíduo se tornará, de um modo ou de outro, aquilo que já é. Mesmo o fracasso está previsto no plano original, por causa da semente que mais tarde vira mulher, homem, trans, cavalo, orquídea, samambaia ou vírus. Do fado, afirmam os fatalistas de todos os tempos, ninguém escapa. Estêvão decidiu ser artista, a qualquer preço, intuindo no fundo que fora essa a sorte a ele reservada. Desde adolescente frequentou museus do Rio e do mundo, visto que os pais costumavam passar as férias com os filhos na Europa, raramente nos Estados Unidos, que consideravam um tanto vulgar. Além disso, a biblioteca paterna contava com inúmeros livros de arte; ele amava em particular dois grossos tomos, que vieram como suplemento da enciclopédia Larousse, nos quais se podia apreciar as obras-primas consagradas pelo Ocidente, desde a arte rupestre até a modernidade de Picasso, quando nada mais podia ser feito. Todavia, Estêvão tomou para si a tarefa improvável de levar adiante o legado do mestre catalão, quem sabe superando-o. Afinal, trazia em si o gênio da família, que exigia dele ser o melhor, independentemente da carreira que escolhesse.
Teve excelentes professores, primeiro em casa, regiamente pagos como preceptores do futuro artista; depois se inscreveu na Escola de Belas Artes, onde brilhou como pretenso pintor, todos lá antevendo uma carreira bem-sucedida. Mas Estêvão não contava com o fato de que, ao longo dos anos 90, a pintura entraria em decadência: no mundo todo, com poucas exceções ninguém mais via interesse no ato de pintar por pintar. O valor em arte se deslocara para novidades — algumas nem tão novas — como a vídeo-arte, a instalação, a performance e, quem diria, o grafite.
Passados cinco anos depois de obter o diploma sonhado, Estêvão continuava um artista semiconsagrado. Semi porque todos que conheciam seu trabalho louvavam-no como no mínimo original, mas o mercado não conseguia se interessar por uma arte que já nascera velha, por assim dizer, tão antiga quanto a humanidade. Careciam todos agora, galeristas, curadores, mídia, público em geral, da verdadeira novidade, aquela que superasse o último escândalo, levando a engrenagem adiante. Foi aí que Estêvão resolveu colaborar com o destino — se todos os sinais indicavam que seria famoso, por que então não dar uma mãozinha, empurrando a roda da fortuna para que girasse mais rápido? Decidiu fazer uma performance como nunca antes, em lugar algum. Planejou tornar-se mendigo e depois relatar em livro de ouro a experiência da miséria que jamais conhecera na vida. O choque público seria enorme, em especial na alta burguesia, de que legitimamente fazia parte.
Ao saber da decisão, o pai ameaçou deserdá-lo, onde já se viu um Albuquerque. Tampouco adiantou o choro compulsivo da mãe, a repulsa da irmã, que sempre o julgara o idiota da família. Estêvão pegou suas roupas mais usadas, não eram muitas, mas o novo papel social (e artístico, não esqueçamos) não exigia grandes recursos, ao contrário, quanto mais despojado se mostrasse, mais convincente seria. Por assim dizer, no sétimo dia de preparo, afinal desconhecia inteiramente a pobreza e muito mais a indigência, era preciso ensaiar, no sétimo dia caiu em desgraça de cara no mundo. Converteu-se no primeiro desafortunado voluntário da Terra, rindo à toa por estar finalmente sozinho no palco da existência, sem o escudo ou a muleta familiar. Romântico que era, preferiu fazer o maltrapilho solitário, aquele que vive em sua esfera, grunhe palavras, confundindo-se muitas vezes com o louco.
Como saiu sem um tostão de casa, esquecendo intencionalmente sobre o criado-mudo a bela quantia que a mãe protetora lhe reservara para qualquer aperto, necessitou achar comida quando sentiu fome. E aí, como fazer. Deixou com prazer a dignidade de lado e tentou pedir esmola, mas, apesar da magreza, seu tipo não convencia, parecia mais um daqueles malandros que as pessoas espertas evitam. Deambulou por dois dias sem sossego, usando as reservas de energia. Dormia e sonhava com frangos assados, peixes magníficos, massas autenticamente italianas e sobremesas que só a negra Danuza fazia; acordava com o gosto na boca e o ventre vazio, era duríssima a vida mendiga.
A vontade de comer aumentando, criou coragem e abriu sua primeira lata de lixo. Viu então que era de fato um artista, somente um bem verdadeiro suportaria aquilo com desprendimento e elegância. Deixaria tudo mais tarde consignado no livro-memória de sua Experiência número 1, como já a denominava. Estêvão estava certo de que naquele momento inaugurava uma nova obra, algo que humano algum jamais tentara: passar necessidade sem necessidade, sentir deliberadamente na pele a vergasta da pobreza, sendo milionário de berço. No futuro, meus colegas de ofício invejarão a audácia: por que não pensaram nisso antes… talvez porque não tenham como eu dinheiro para esbanjar, vivendo às avessas como mendigo. Mas quando sentiu o cheiro de podre, que jamais chegara a suas narinas com aquela intensidade, o estômago se revolveu por completo. O corpo debilitado era todo sensações, percorria-o uma náusea inusitada, um torpor que o fazia ver o contorno dos objetos fora de foco, como quem toma um ácido poderoso e sente os efeitos muito além do esperado. Tremia, tremia, tremia. Súbito se lembrou de um poema de Manuel Bandeira, lido numa coletânea que pertencia ao pai, poema este que falava de um bicho catando detritos para comer e do horror de descobrir que o tal bicho era um homem… Fechou a lixeira com asco e passou mais um dia esfomeado.
Até então fome era para ele substantivo abstrato, palavra sem correspondência na realidade, pois toda vez que a sensação desagradável advinha era logo saciada. Ninguém nunca lhe explicou como era a existência de quem não tem o que comer, nenhum professor de história ou de ciências sociais ou mesmo de exatas lhe dera a fórmula da vontade incontrolável de devorar sem ter o quê. Aquilo era o oco mais oco que podia imaginar, o vazio absoluto, sem nenhuma garantia de retorno ao bom sentimento de gravidade, que nos salva a todos da demência. O desespero chegou a tal ponto que pensou em abater e se refestelar com um daqueles corpos que pululavam pelo Centro, mas prevaleceu o amor atávico por sua espécie. Além do mais, desde a remota época da colonização, o cristianismo condenava inapelavelmente a antropofagia, a despeito de o próprio Cristo ter oferecido seu sangue e sua carne aos discípulos.
No auge do sofrimento, sorriu beato, enfim alcançava a felicidade de ser outro. Eis a prova definitiva do artista, alguém capaz de levar o dom inato ao extremo, com o risco da própria vida, tal como muitos ousaram antes dele, porém nenhum com tanta audácia. Passou uma tarde inteira se deliciando com aquela alegria de poder viver de sua arte, embora ao avesso do que imaginara. Uma epifania, inesperada como todas. Isso lhe deu forças para abrir outra lata de lixo e fazer a primeira refeição desde que saíra de casa. Por sorte, um restaurante da Lapa, seu bairro preferido para flanar, dândi do infortúnio que se tornara, deitou fora em sacos plásticos os restos do almoço, e ele pôde às cinco da tarde, esganiçado, se deliciar com algo mais ou menos fresco, embora misturado a sujidades. Pouco importava, não era mais o garoto mimado que toda vez que derramava um líquido no tapete ou no sofá gritava o nome da empregada — nunca tinha pegado um pano de limpeza, jamais suas mãos delicadas tinham tocado o nojo do lodo. Foi o melhor repasto de sua vida, porque temperado com o molho da fome concreta. Agora sim, era um homem acabado, homem e artista, no duro. Demasiado humano. A beleza da miséria não se compara nem de longe à miséria da beleza, dizia de si para consigo, como um mantra. Ou: Mais vale um artista pobre do que um pobre artista. Repetia tais frases nada óbvias para que ganhassem algum significado.
Porém, nos dias seguintes não teve a mesma sorte, nem sempre sobrava comida nos restaurantes e, como já estava habituado à penúria, passou a catar de lixeira em lixeira um pedaço de sanduíche aqui, um gole de Coca ali, uma sobra de salada acolá, assim por diante, até que o monstro na barriga deixasse de incomodá-lo. Mas o monstro tinha sete vidas e no dia seguinte voltava ainda mais forte, pedindo mais nutrientes, ao ponto da alucinação.
Foi aí que Estêvão descobriu porque os moradores de rua dormem tanto, um modo de poupar o pouco vigor de que dispõem. Então começou a ficar quase o dia inteiro deitado no leito improvisado com jornais, só acordando para pedir dinheiro ou catar alimento. Felizmente, para sua surpresa, o sistema imunológico se adaptou à nova dieta: nenhuma febre, gripe ou diarreia miraculosamente o acossou. Estou no caminho certo, refletiu aliviado, nenhum mal me atingirá. Viver de restos, quem diria. Jejuar correspondia a um tipo de ascese, uma questão de definir o cardápio adequado, mas quase nunca no caso por livre-opção.
Quando via algum conhecido na rua, escondia o rosto, apesar do orgulho que sentia pela coragem de assumir aquela real condição. Desde o início, determinou que investiria um ano naquele projeto e que de preferência depois não voltaria ao lar, vivendo com seus próprios recursos. Encontraria decerto um modo de sair, por esforço próprio, da privação aguda para o conforto da classe média, tal como seu pai dizia que seu bisavô português conquistara a América, mesmo sendo imigrante pobre. Já Estêvão se transformara em um migrante voluntariamente depauperado, convertido à classe nula em nome da arte, o fabuloso pobre menino rico. A única coisa que o chocava era a indiferença dos transeuntes, ele fazia agora parte de uma população invisível nas grandes cidades do planeta, o que também lhe dava um sentido de missão.
Era emocionante observar o mundo dessa perspectiva, de baixo para cima, e não de cima para baixo como fora acostumado. As pessoas, os veículos e os prédios pareciam muito mais altos, mesmo um rato ou uma barata assomavam ameaçadores, pré-históricos, na calçada onde Estêvão repousava. O ruído da cidade fazia ver as coisas e as cores ainda mais desproporcionais, por um efeito ainda não estudado de estereofonia visual. Sua sensibilidade artística estava sendo afinada com o potente esmeril urbano, dali surgiriam inúmeros outros planos de intervenção estética. Quem sabe, por exemplo, passar alguns meses numa prisão, por um pretexto qualquer, como tentativa de assaltar banco ou sequestrar alguém de minha antiga classe, devaneava entre um sono e outro. Depois escreveria livros como Diário do Assaltante ou Manual de Sequestro para Amadores. Oficialmente, poderia também pleitear uma residência como resistente político na China, havia muitas instituições de fomento para isso; lá encontraria o performista-engajado mundialmente célebre, um modelo de bravura.
Durante esse tempo, ligou apenas uma vez para a mãe, dizendo que estava bem. A coitada vivia a poder de remédios, pois uma pessoa maldosa lhe contara que vira seu filho mendigando, e a pobre senhora quase morreu numa crise hipertensa. Não sentia mais nada, os medicamentos não deixavam, habitava uma zona fora do tempo, a voz do filho lhe pareceu de outro planeta, quem sabe de outra galáxia. Que fizera para merecer isso.
Depois de alguns meses exposto a sol, chuva, poeira, violência da polícia e de bandidos, quase atropelamento etc., Estêvão aceitou finalmente a amizade de um colega de desdita. Gildo parecia meramente interessado no afeto do novo camarada, mas tinha outras intenções. Iniciou Estêvão no consumo do crack, este relutou, porém acabou convencido de que a droga era um atenuante da fome, abrindo as portas para outras percepções. Viciou-se rapidamente e logo precisou traficar para sustentar o luxo de viver drogado, tal como o próprio Gildo. Sobreviveu daquele modo por meses, feliz por ter encontrado um modo único, inimitável, de se tornar um exemplar excepcional da humanidade.
Até que se desentendeu com um dos subchefes do tráfico, ou antes, o mandante ficou contrariado por Estêvão ter consumido a droga para venda sem lhe dar lucro. E assim o imaginativo artista amanheceu queimado na Praça Tiradentes, matéria de capa do jornal Extra. Era enfim, por vias tortas, a ambicionada fama, que poderia ser acompanhada por seus colegas de mendicância, nas manchetes dos próximos dias. Ainda o levaram para o Hospital Souza Aguiar, mas não resistiu às queimaduras de primeiro e segundo grau.
Os Albuquerque jamais souberam que fim levou o herdeiro, enterrado como indigente, sem honrar a dinastia do nome. Em algum lugar do planeta dever-se-ia erguer um monumento ao artista anônimo, aquele que morreu no auge de seu experimento, em meio ao lixo, sem atingir o luxo do renome. O que o mísero Estêvão ignorava é que sua performance nada tinha de original, pois já tinha sido realizada nos anos 70 por um artista tcheco, Ludvik Dussék, que passara, em plena ditadura, um mês voluntariamente como pedinte, exilado da vida dita normal, nas ruas hibernais de Praga. Tal como nosso herói, sua pretensão era vaguear também por um ano, mas quando o governo comunista descobriu a façanha, interpretada como protesto político (Não existem desvalidos no comunismo, diziam, que veio para acabar com a miséria do globo.), encarcerou para sempre esse outro artista da fome, que obteve pleno êxito em sua Experiência batizada por ele de número 0, definhando numa cela até a morte. Nem o brasileiro, nem o tcheco entrou infelizmente para o Guia da Arte Moderna e Contemporânea. Daí a urgência de se fazer uma placa que seja em homenagem aos jovens talentos sacrificados.