Cometi um erro emocional, Beatriz se imaginou contando à amiga dois dias depois — foi o que ele disse assim que abri a porta, o tom de voz neutro, alguém que parecia falar de uma avaliação da Bolsa, avançando sem me olhar como se já conhecesse o apartamento, dando dois, três, quatro passos até a pequena mesa adiante em que esbarrou por acaso, depositando ali o vinho com a mão direita e a pasta de textos com a esquerda (e ela se viu desarmada no meio de três sinais contraditórios, o erro, o vinho, o texto, mais a espécie de invasão de alguém que está à vontade — o que ela havia sonhado, Beatriz teria de confessar à amiga, e ambas achariam graça da idéia — à vontade, mas não do modo correto) e Beatriz fechou a porta devagar com um sorriso de quem se vê imersa na ironia, e isso é bom; e se virou para escutar o resto, agora vendo-o com as mãos livres, a silhueta contra a luz, os braços brevemente desamparados daquele homem magro:
— Eu me apaixonei por você.
Isso acontece, ela pensou em responder, a esgrima instantânea de alguém que entra num jogo difícil mas saboroso, mas não disse, o gesto lento ainda lá atrás abrindo a porta para um erro emocional, e ela de novo sorriu defensivamente em silêncio daquele provável mal-entendido, tentando colocar o breve evento de três segundos num quadro que lhe desse um sentido seguro, mas era impossível, porque agora, como se ela não existisse, ou (corrigiu-se) como se a reação dela fosse para ele um dado completamente irrelevante nesse momento, um “não estou interessado no que você pensa a respeito disso, o problema é meu” — e ele suspirou, puxou uma cadeira, sentou-se, abriu a pasta e, alguém que não havia dito o que havia dito, de novo olhou para ela:
— Vamos conversar sobre o nosso trabalho?
Uma cena com um toque de teatro, ela avaliou, como quem põe uma moldura nesses três segundos, pendura-os na parede, e assim encerra o que não tem solução. Uma homenagem que ele me faz, uma homenagem gratuita, ela interpretou, quase com vergonha. Soterrada pela timidez, preferiu não dizer nada, cuidando de manter a sombra do sorriso no rosto para que ele interpretasse o seu silêncio do modo certo, isto é, não como uma reação a uma invasão agressiva de sua vida — na noite anterior acontecera apenas um jantar civilizado a três, a sincera admiração pelo bom escritor, um certo derramamento dele que ela atribuiu ao exagero do vinho, dentro da medida do aceitável, nenhum vexame, e a proposta quase casual, de fim de noite, para que ela o ajudasse em alguma coisa que Beatriz não entendeu mas aceitou imediatamente, porque seria afinal manter contato com um escritor que se admira: e de tão poucos e ralos sinais (o telefonema esquisito de manhã cedo, aquela mal disfarçada aflição de quem dormiu mal), ele agora irrompe abrupto em sua casa dizendo-se apaixonado, sem sequer olhar para ela — que ele mesmo interpretasse o silêncio dela, Beatriz seguiu planejando, enquanto procurava o saca-rolhas na gaveta da cozinha, onde desta vez não estava, não como uma recusa da paixão (e sorriu da idéia, paixões não se recusam — apenas explodem e sobrevivem independentemente da ação dos envolvidos), mas como um precavido e cuidadoso e sensato pé-atrás.
— Desta vez estava no lugar certo — ela disse, pegando o saca-rolhas do porta-chaves da parede e colocando-o na mesa diante dele; em seguida, abriu a pequena cristaleira para tirar dois cálices, um para ela, um para ele, que, pasta aberta, fingia ler com atenção um manuscrito — manuscrito mesmo, ela se surpreendeu, linhas criptográficas, riscadas, rasuradas, numa folha amarela, e ela pensou simultaneamente na beleza gráfica daquele caos (imaginou uma moldura e a página avulsa na parede, como uma abstração) e no fato de ele ser tão autista que sequer teve a gentileza de olhar em torno e dizer algo como “que ótimo esse seu apartamento”, ou pelo menos ir até a janela e dizer “bela vista você tem daqui”, ou algo como (ela lembrou de um amigo mineiro) “Curitiba parece Belo Horizonte, só que sem morros. Você já foi a Belo Horizonte?”, ou então fazer alguma pergunta gentil antes de pensar nele mesmo, talvez “aqui é o centro da cidade?”, já que ele não é de Curitiba, está só de passagem, ou ainda, apenas para ser cortês, “que bonita essa cópia do Klimt, está no mundo inteiro e a gente nunca cansa de olhar, aquelas figuras douradas se beijando como num mosaico bizantino pagão”. Em vez disso, declarou-se apaixonado, confessou que isso era um erro — um erro “emocional”, mas teria sido mesmo essa a palavra?!, tão, não sei, inadequada, ela tentou se lembrar (para contar com exatidão a Doralice, que certamente daria uma risada saborosa), talvez se confundindo com um título de auto-ajuda com que esbarrou de relance ontem no balcão da livraria —, e Donetti pensava somente nele mesmo. Com um toque de vergonha, quem sabe:
— Dê uma olhada — e ofereceu a folha amarela, sem erguer os olhos. Em seguida, as mãos — as mãos dele, ela percebeu enfim com nitidez, ontem o restaurante era uma penumbra só, as mãos tinham um toque operário, dedos grossos, a pele morena manchada, pêlos no dorso — as mãos dele avançaram ao saca-rolhas e ao vinho.
Ele não tocou mais no assunto? — a amiga irá perguntar. Talvez eu o tenha inibido com o meu silêncio. Beatriz pegou a folha, e apesar de uma insidiosa má vontade que de repente ameaçou crescer na sua alma contra aquele homem difícil, ou, ela reavaliou, apenas esquisito (você sabe que não gosto de situações inseguras, ela diria mais uma vez à amiga), tão extraordinário por escrito e aparentemente tão estúpido ao vivo, um teatro literário ambulante (o que há duas noites, é verdade, parecia engraçado, mas agora —), apesar disso sentiu uma emoção especial tocando aquela página: estou diante de um original manuscrito de Paulo Antônio Donetti da Silva, o nome completo de Paulo Donetti, um dos mais importantes escritores brasileiros da virada do século XXI (talvez o mais importante, ela pensou em frisar diante de uma audiência imaginária mas desistiu da idéia porque iria parecer antes um auto-elogio que um retrato dele), fato que nem a evidente decadência de seus dois últimos livros conseguia empanar, ela ressalvou para a platéia — e decifrou o título — Uma mulher difícil —, escrito abaixo de um título anterior riscado por uma cortante, quase furiosa linha horizontal (A mulher da Babilônia); e, no momento em que ele entregava uma segunda folha amarela, finalmente levantou os olhos para Beatriz, talvez pela certeza de que ela estaria olhando para o papel, e não para ele; e Donetti sentiu um sopro de fraqueza física, alguém submetido durante muitas horas a uma tensão inexplicável, ou apenas explicável pelo óbvio, a decisão de não viajar de volta a São Paulo, de pagar mais uma ou duas diárias caras no hotel, misturada com o desejo incerto, na verdade maluco, de viver nessa cidade por um tempo (preciso de um lugar para ficar, e ele olhou em torno num lapso invasivo), sofrendo ainda a irritação na verdade mesquinha contra Cássio (ele tinha perfeita consciência de que Cássio não era exatamente uma má pessoa; era apenas um concorrente com uma história comum, aquele laço afetivo e literário de alguns anos antes que os afastara para sempre), remoendo as três críticas negativas ao seu livro recém-lançado (uma delas violenta, daquele outro filho da puta de quem ele gostaria imensamente de esquecer o nome), além dos resíduos da última mulher, encarapitada no alto de um ódio contra ele cujas razões ele não conseguia atinar, sentindo a absurda desproporção das coisas do mundo como um idiota inimputável — Eu sou um idiota inimputável, ele sempre gostou de dizer, sorrindo, sem mentir completamente, a criança balbuciando o que foi que eu fiz diante de uma fera com um advogado — e Beatriz.
Beatriz — ainda sem saber afinal qual era a sua tarefa, ou o seu papel, naquele entreato — leu duas, três, quatro — leu de novo a quarta linha, a letra indócil —, cinco linhas, e começou a sorrir: isso aqui é muito bom, ela pensou, um segundo esquecida do resto, uma imagem violenta suavizada pelo espanto da própria descoberta e por uma sensação de desamparo, ela pensou, quase decidiu dizer em voz alta, mas era cedo — e foi adiante, com medo de que o texto caísse da altura em que se colocava logo na primeira frase, o que, parece, começou a acontecer já no segundo parágrafo: Quando ela pensou isso — por que ele não tira isso aqui, e a mão tateia a mesa atrás de um lápis imaginário para sugerir ao vivo, concretamente, o risco no papel, eu nasci para viver assim com esse homem (ela e Doralice rindo, Beatriz imaginou a cena), e ao mesmo tempo intrometeu-se a idéia de que ela gosta de literatura pesada, de becos sem saída, de agressões surdas, de aporias, incomunicabilidades exasperantes e gaguejantes — mas só na literatura, na vida ela quer final feliz, na vida ela quer casar (como num sonho campestre de um livro de Jane Austen), na vida ela quer se sentir bem e se sentir amada, na vida ela quer a doce sensação de permanência — a doce sensação de permanência — ela sussurrou, será que isso é bom?, ainda tateando o lápis imaginário temendo num décimo de segundo que a sua mão encontrasse a mão dele também perdida sobre a mesa, e enfim olhou para o escritor que justamente estava com os olhos pregados nela, os olhos do Prêmio Jabuti de Literatura pregados nos olhos dela como um adolescente esperando a nota da professora, como se perguntasse ao sussurro que ouviu O que foi que você disse? — e assim se fitaram também por segundos, tempo suficiente para que ele avaliasse a cor dos olhos dela, mais claros do que lhe pareceram ontem à noite, um misto de azul e verde com estrias em castanho e com o mesmo fio de frieza que ele pressentia mesmo no escuro, alguém que por um instante se afasta do fluxo da vida para avaliar e só então volta ao rio do tempo; e sentiu o breve impacto da beleza, desviando o olhar, perdido. Ergueu de novo os olhos, como se envergonhado da covardia, para vê-la de novo entretida na folha amarela, acompanhando cada palavra decifrada com um mover de lábios (ela está feliz com o que lê, ele pensou, otimista), e os lábios como que contrariavam os olhos, muito bem desenhados, o perímetro feito a lápis de ponta fina e, parece, mais vermelhos e cheios do que a pele clara do rosto parecia prometer, todas aquelas delicadas ranhuras verticais, dois belos gomos plenos de sumo — como se houvesse a sombra de uma índia nesse DNA, ele sonhou, e em outro décimo vertiginoso de segundo pensou na mestiçagem brasileira e dele próprio e nos perigos de escrever uma tese, não uma ficção, o narrador totalitário (Cássio dizendo a ele, ontem mesmo, certamente irritado pela invasão sobre, quem sabe, a Beatriz que ele imaginava propriedade sua: No romance A foto do espelho você se livrou disso, o que deixava implícito o quanto ele estava imerso nessa catequese de, a essa altura, terceira mão — mas eu sou mulato, ele diria, defensivo); e dos lábios subiu ao nariz que, assim de frente, pouco se revelava, mas a altura (imaginou-se estendendo uma pequena régua e tirando a medida, das sobrancelhas até os lábios, e calculando uma proporção de Botticelli) é perfeita, e desviou a cabeça lentamente para desenhar o perfil, como quem vai tirar uma fotografia, torcendo para que Beatriz não se movesse, mas ela rompeu súbita a película da imagem com um sorriso amplo:
— Você não vai abrir o vinho?