Um bufão no século das luzes

Resenha do livro "Uma viagem sentimental", de Laurence Sterne
Laurence Sterne, autor de “Uma Viagem sentimental”
01/07/2002

Nada melhor do que o prestígio espantoso de que Laurence Sterne gozou em vida para espantar o mito romântico e um tanto quanto idiota do artista incompreendido por seu tempo. E talvez nada melhor do que a obra excêntrica desse professor de Retórica por profissão, pároco por destino e mundano por opção, para compreender esse tempo. Infelizmente hoje talvez só possamos reter, num primeiro momento, o aspecto exterior da sua prosa: o uso e abuso da digressão, a citação erudita, a quebra abrupta da descrição, a acentuação livre, o aproveitamento de recursos tipográficos e visuais, a conversa do narrador com o leitor, a introdução de pequenos trechos alheios à narrativa e até técnicas bastante curiosas como o congelamento de cena, que o narrador efetua no Tristram Shandy, deixando o engraçado Tio Toby falando sozinho enquanto guia os olhos do leitor para outro episódio. Mas a valorização desses elementos não leva a uma compreensão completa da sua arte, embora possa servir de álibi a muitos oportunistas atuais.

Devoto do filósofo David Hume, que concebia o mundo como uma representação mental fora da qual não haveria nada que pudesse ser conhecido, provavelmente o mestre irlandês tenha descoberto nele o seu método de escrita, que valoriza uma associação livre dos objetos e das ações a partir do ponto de vista seletivo de um único observador. Se todas as coisas se dão e se dão na nossa mente, e uma sucessão de acontecimentos pode estar contida na duração de um único lapso mental, Sterne se sente à vontade para, por exemplo, ignorar o tempo real e fazer com que o mesmo Tio Toby leia avidamente durante uma hora e meia sem que esse tempo seja suficiente sequer para seu criado calçar as botas e ir buscar o auxílio do parteiro, Dr Slop, na aldeia vizinha. O tempo físico é substituído pelo tempo psicológico, e esse varia conforme a perspectiva do personagem que esteja em evidência.

Na Viagem sentimental, publicada em 1768, um mês antes de sua morte, as técnicas atípicas de Sterne não chegam a ser exploradas com a mesma intensidade com que o são no Tristram. Mas nela ele retoma alguns aspectos que estão presentes em toda sua obra. A começar pelo fato do narrador viajante que a protagoniza se chamar nada mais nada menos que Yorick, o mesmo pároco bonachão que encontramos no Tristram, e, por sua vez, o nome do bufão da corte de Hamlet, cujo crânio, desenterrado e lançado para o alto pelos coveiros, é o objeto de um dos momentos mais famosos e sublimes da história da literatura. Embora as peripécias narrativas, o desenho de frases e a música do estilo de Sterne sejam repletos de um brilho palaciano, e ele mesmo tenha dito que a arte da prosa é apenas uma variante mais ornamentada da arte da conversação, esse Yorick funciona como uma espécie de alter ego seu, e uma contrapartida da literatura de gênero elevado: uma identificação biográfica que o levou a adotar o personagem vulgar de uma grande tragédia como paradigma de sua vida e de sua obra.

Sterne bebeu em várias fontes para compor seu relato de viagem. Há muito pouco da Viagem à Itália de Montaigne, já que seu objetivo é mais satírico que meditativo, mas muita paródia sarcástica da prosa de viajantes empedernidos como Smollett, que andavam então na moda e que são um prato cheio para quem quer ironizar a frivolidade da visão de alguém que se debruça sobre a experiência fátua de seu próprio itinerário. E com ele Sterne deu à literatura de viagem um novo modelo e um novo significado: a dureza de tom, a ironia, a complacência com o leitor e a maleabilidade da escrita, que lança mão de referências literárias sem se esgotar na observação pura e simples, e que estão na origem de uma tradição a que se vincula uma excelente literatura, que vai das Viagens na minha terra de Garrett à Viagem à roda do meu quarto de De Maistre, do Brás Cubas do bruxo de Cosme Velho à violência de imagens e de insultos das anotações que Henri Michaux recolheu perambulando pela China e a Índia.

A liberdade formal de Sterne fez dele o pai de uma das melhores linhagens da literatura moderna, embora ele próprio pareça em certo sentido deslocado das idéias vigentes de seu tempo, o que não exclui sua popularidade, já que essas podem muito bem ser duas vias de mão única. Enquanto Voltaire se empenhava na divulgação de Newton e Locke na França e Diderot e D’Alembert fundavam as bases da Enciclopédia, Sterne, dando seqüência às diatribes do bufão no qual se espelhou, decalcava quase literalmente capítulos inteiros da Anatomia da melancolia de Robert Burton, espécie de compêndio de generalidades bizarras do século 17, e se filiava à grande tradição da literatura cômica e satírica do Quixote e de Rabelais, fixada no século 15 mas, em última instância, de extração medieval. Creio que isso sirva sobretudo para nos ensinar algo básico, mas que hoje em dia muitas vezes se mostra nebuloso até para inteligências bem afortunadas: a boa arte ignora o seu tempo, pois só assim ela pode ser um atestado válido de suas contradições. Podemos ir mais longe, e dizer até que ela luta contra o seu tempo, para se livrar enfim desse espírito de gravidade, o pior de todos, que a arrasta para o fundo e anula a possibilidade de ascensão da beleza acima das contingências pueris da verdade e dos documentos.

Ezra Pound disse em algum lugar que o artista mais excêntrico é o que na verdade permanece mais fiel à tradição. Seguindo-a, ele inevitavelmente acaba sendo alheio, indiferente e até mesmo anacrônico em relação ao espírito de sua época. E creio que seja por isso que Carpeaux definia toda grande obra de arte como sendo anacrônica. A base da arte de Sterne está na alteração que ele efetuou na prosódia da prosa de língua inglesa, aproximando-a tanto da fala e do ponto de vista do narrador em primeira pessoa, que acabou, de quebra, arrebentando outras leis, como a unidade de tempo, espaço e ação, que o velho Aristóteles propugna e que foi seguida quase à risca por séculos e séculos. Mas isso ainda não diz grande coisa sobre o seu valor mais profundo, já que a forma não define o sentido último de uma obra. Sterne estava longe de ser a vanguarda de seu tempo. E muitos ainda não entenderam que por trás de todo make it new há mais recusa do que complacência, e acreditam que ele seja realmente o autor mais moderno e atual do século 18, mas o fazem identificando-o às moedas correntes da nossa época. Assim, valorizam-no pelos motivos contrários a todo o seu significado real, ou seja, pelos motivos errados.

Uma viagem sentimental
Laurence Sterne
Nova Fronteira
158 págs.
Rodrigo Petronio

É poeta e crítico literário. Autor de Pedra de luz, entre outros.

Rascunho