SEGUNDO ATO
Quarto quadro — O acampamento
(Percussão e vozes ao longe lembram “Pedras por
Pães”, o baião que aparecera no primeiro quadro.
Cena vazia, a não ser pela presença do rosto na televisão, que fala)
Televisão
— A gente do morro da Alegria,
ora reunida em cantoria,
se instalou na praça e desafia
os poderes constitucionais.
Pede muito, pede muito mais
do que a ordem social, a paz
serão capazes de oferecer.
Onde vai dar, onde vai ter
essa gente sem-o-que-fazer?
Homens e mulheres, acampados
em frente a prédios engravatados,
fundaram na rua seu reinado.
Ouviremos também as polícias,
voltaremos com outras notícias.
(Com uma mesura) E, ao telespectador, delícias!
(Luz se abre deixando ver os contornos do acampamento. Os Últimos ergueram barracas. Em cena,
a Anônima, sozinha, prepara o café. Antes de ela
começar a falar, tema instrumental sublinha, por
instantes, os seus movimentos diligentes. Enquanto
conclui a tarefa, a moça recita falando de sua nova
vida, agora incorporada à marcha dos Últimos. Os
versos e a sua inflexão têm certo ar infantil, gaiato)
Anônima
— Em vez de michê, café,
em vez de bordel, tricô.
Não freguês, mas cafuné
no quengo, em vez de estar só.
Dez novelas de tevê,
jamais um papel de pó;
TVA e SBT
em vez de forrobodó.
Em vez de coió, Bial,
em vez de cotó, Van Dam,
Malan, Jornal Nacional,
normal quem era tantã.
Amásia do Catador,
quem sabe uma vez xodó?
Será que dessa vez vai?
Serei feliz com papai?
Um beijo quando ele chega,
um queijo quando ele sai.
Eu agora sou a nega
do Catador de jornais.
Não a de trezentos machos,
cheios de esperma e de pressa,
esvaziando seus bagos
sem mais, sem muita conversa.
Alguns vêm sujos, suados,
cansados, descabelados;
outros, de fato, bonitos,
mas fugidios, esquivos.
Alguns são pobres de espírito,
outros, pródigos, cristãos;
uns estréiam, virgens, tímidos,
quase sempre sem tostão.
Há os que vendem conselhos
e oferecem empregos,
costumam ser os mais velhos,
generosos, mas ingênuos.
É tarefa complicada,
essa que fui arrumar;
eu, que trabalho deitada,
sei quanto pode cansar.
Estou, portanto, de férias
das farras da profissão.
Às vezes morro de tédio…
Mas que remédio? (Com graça) É tesão!
(Aproxima-se o Anônimo, preterido no amor da Anônima, que ficou com o Catador. Ele ensaia a sua cantada)
Anônimo
— Como vai a minha bichinha?
Deu de dar duro na cozinha?
Anônima (seca)
— Vou bem, obrigada.
E estou ocupada.
Anônimo (faunesco)
— Eu acho que não é a vida
que merece a minha princesa.
Anônima
— Ex-mulher da vida.
E já não sou sua.
Anônimo
— Que maneira tão pouco inglesa
de receber um companheiro!
Anônima (em voz baixa)
— Rua!
Me deixe em paz.
Se meu companheiro
de cama e de mesa
nos vê por aqui,
vai dar nos jornais.
Anônimo (com ironia)
— “Crime passional movimenta
a marcha dos sem-teto!”
Anônima
— Correto. Me deixe em paz.
Anônimo
— Seu homem não morre mais.
(O Catador, visto pelo Anônimo antes que o público o veja,
se aproxima)
Catador (já impaciente)
— Largue a menina, compadre!
Anônimo
— Menina?
Catador
— Menina, e minha mulher!
Anônimo
— Mulher é de quem pegar!
Catador
— Não, não é. E, se é,
cheguei pra ficar. Sai fora.
Anônimo
— É cedo pra ir embora.
Essa mulher já foi minha
e vim buscar o que é meu!
Catador
— Agora quem manda sou eu!
(Anônimo canta o roque “Não Toque Esta Mulher” em diálogo com o Catador)
Anônimo (cantando) — Não toque esta mulher, amigo
Catador — Eu toco se quiser
Anônimo — Não toque a que dormiu comigo
Catador — E hoje não te quer
Anônimo — Um ódio enorme agora invade
meu coração vazio
Catador — Então acordas a cidade
que dorme sob o frio
Anônimo — Trago uma arma
Catador — És um otário
Ser secundário
é o teu carma
Os dois — Está no ar
Cena de sangue, de bangue-bangue
No Brasil
Cena de filme, cena de ciúme
Catador — Meu caro, esta mulher me ama
Não sabe disfarçar
Anônimo — Mas já rolou na minha cama
nas noites de lua
(Ainda o Anônimo) Um sentimento torpe encobre
meu coração perplexo
Catador — O meu amor é bem mais nobre
O teu é ódio e sexo
Anônimo — Olha o revólver
Catador — Cala essa boca
Anônimo — Não me provoca
Catador — Dá o teu show!
Os dois — Está no ar
Cena de sangue, cena de suingue
No Brasil
Cena de filme, cena difícil
(Terminada a música, Anônimo e Catador estão
prontos a engalfinhar-se. Entram todos os personagens. Confusão. A Televisão — transformada em
repórter, solta em campo, livre, portanto, da moldura do vídeo — dá a notícia
Comédia musical em dois atos e cinco quadros
A comédia musical Últimos, do jornalista, escritor e compositor brasiliense Fernando Marques, apresenta, em dois atos, a história de movimento de homens e mulheres sem-teto, os Últimos do título. Foi escrita em versos metrificados e rimados e conta com nove canções. A peça pretende ligar-se à tradição recente dos musicais de índole política, que se fizeram sobretudo nas décadas de 60 e 70 — neles apreendendo as lições que possam importar a nosso tempo. O autor teve, no argumento, a colaboração do ator e diretor André Amaro. As personagens se vêem desabrigadas depois de uma dessas catástrofes naturais que, somadas ao descaso dos governos, deixam à míngua, todos os anos, com monótona e absurda regularidade, gente que habita as áreas pobres das cidades. Os Últimos reúnem[1]se num movimento que aos poucos define as suas reivindicações básicas: teto, condições dignas de vida. A marcha atravessa as ruas, passa por uma disputa interna de poder e se avista, enfim, com o líder político local, o prefeito Fernando. Os líderes da marcha são o Homem da Bicicleta e a Senhora. Eles encarnam alternativas fundamentais que se impõem aos movimentos populares: o caminho do confronto, de um lado, e o da contemporização, de outro. Luta direta ou negociação política? Há uma trama subsidiária, envolvendo a competição de dois homens em torno do amor de uma mulher, fio que se enlaça à trama principal no desfecho. A ação acontece numa das capitais brasileiras modernas, sem nome e região definidos. A trajetória das personagens, ressalte-se, envolve canções, humor e lirismo. Últimos será publicada pela Perspectiva em breve. O livro trará, encartado, o disco onde se registram as músicas da peça que, com arranjos de José Cabrera, são interpretadas por artistas de Brasília e pelo próprio autor