O ar que sai da sua boca
Meu amor.
Estou estranha, aérea, com raiva sentida, machucada, com ciúme, confusa, me sinto num beco sem saída. O que faço comigo? Não me reconheço, até minhas amigas estranham.
Hoje, durante nosso encontro, algo diferente aconteceu.
O silêncio, os toques, os beijos, a falta do riso e dos sorrisos, como se a penumbra do quarto tivesse invadido nossos corpos.
Mas, ainda assim, silentes, me impressiono com a intensidade, com o carinho, a ternura, o calor e o amor que emanam de nossos gestos, dos nossos beijos, nossos toques.
Quando estamos juntos, quando vc se solta, se modifica, tudo é tão intenso. Vc me faz tão bem. Vou viajar, um longo trabalho. Sabe como está a situação, todo o mundo desempegrado. Como vou passar semanas, meses — sei lá quanto tempo — sem te ver e com a minha fantasia correndo solta?
Estou angustiada.
Porque a única coisa que me alivia é o ar que sai da sua boca e vem parar junto ao meu coração. Ele me aquece, me completa, me alimenta e me dá paz.
Nisso não tem nenhum exagero, só no primeiro parágrafo.
Te amo. Letícia.
Me faz tão bem reler esta carta.
Releio todas. As datas se confundem,
Estar plugado
Sinergia. Holística (me alertaram que entra em baixa). Empatia. Hipado. Tribo. Terminologia do segmento celular: WAP (Wireless Aplication Protocol). NTT Docomô (Empresa japonesa). Palavras a ser usadas em conversas:
A duração das palavras é efêmera me garantiu o assessor. Que puta saco! Tem hora que perco a paciência. Saio do sério, por mais que adore minha carreira. Não chegam os roteiros, os textos a decorar? Quanta coisa mais a ler, a guardar, a anotar. Estar atento.
Não cometer deslizes.
Uma expressão pode indicar que você está fora de moda, fora do tempo, do contexto. Pronto, grita o meu Terminólogo, esta é uma palavra despropositada, anos 70, sociologia, não a pronuncie.
Ele gosta de falar assim: as pronuncie.
Revistas que meus Assessores de Cultura Vazia devem assinar:
Wallpaper, Esquire, Vanity Fair, Visionaire, GQ, V, Nova, Studio, Trip Contigo, Carícia, Speed, Glamour, Premiére e a W. Pega bem ser visto com a National Geographic americana debaixo do braço. O Cahiers du Cinem, Le Point, Le Monde, La Republica. Para não dar impressão muito artificial é bom misturar um jornalzinho sensacionalista. Ou um fanzine. Printar textos da internet.
Conseguir uma publicação dos manos da periferia.
Condecorado com grifes
Os três a minha frente, felizes.
— Fechamos belos contratos. Contratos hipados! Você está vestido, calçado, comido, banhado até o final do ano. Até cagado se topar usar certas marcas de papel higiênico. Mas vai ter de cumprir a programação. Vai ter de chamar um Assessor para Organograma de Roupas Contratadas.
— Mais um filho-da-puta comendo à minha custa?
— Você vai ter prazer de pagar. Olhe a programação.
Dia 1 será Versace.
E no 2 a Fórum.
3 para Ellus.
4 fica para a Zoomp.
5 reservado para Ricardo Almeida.
6 coube a Richards.
7 ao Armani.
8 a TNG.
9 foi escolhido por Calvin Klein.
10 concedido a DNK Homem.
11 a VR.
12 entra a Dior.
13 sorteado, por causa da superstição. Ganhou Ermegildo Zegna.
14 é de Gianfranco Ferre.
15 da Stone Island (Letícia acha que não faz meu tipo).
16 do Hermes.
17 ficou para Jean Paul Gaultier.
18 saiu para a Windsor.
19 para René Lezard.
20 concedido para Toni Gard.
21 é do Hugo Boss (Letícia me odeia nestas roupas; mas ela brigou comigo).
22 é Romeo Gigli (As mesmas que Caetano Veloso usa, fico bem).
23 será sempre Kenzo.
24 caiu para Tommy Hilfiger.
25 para a CP Company.
26 para a Strell Sun.
27 quase final, mas ainda entrou a Prada.
28 coube a Doce & Gabbana (Gosto, e basta).
29 é da Gucci.
30 fica para Ralph Lauren
31 no finalzinho, a sorte é de Helmut Lang
— E o do dia 31? Nem todo mês tem 31.
— O contrato dele é mais barato.
— Ainda ficaram na fila Schneiders, Joop Jeans, Patrick Hellmann, Artigiano, Cerrutti, Baumler, Lanvin. Todos de stand by.
— Quando viajar vai ter de usar malas Montblanc.
— Estamos vendendo patrocínios para o boné, os óculos, a gravata, o cinto, o relógio, a pulseira, o colar, o alfinete de gravata, as meias, o celular, o lenço de papel (vai ter de fingir que assoa o nariz nove vezes por dia), o anel (Natan está interessada). Cada centímetro de seu corpo vale dinheiro. A cueca, a sunga, a camisinha (vai ter de mostrar à mulher a marca; vai ter de comer quatro por dia, esquecer camisinhas nos banheiros dos bares), a escova de dente (terá de escovar os dentes em um banheiro público — pode ser de shopping — uma vez por dia), o colírio (terá de fingir que põe colírio nos olhos em lugar público, também), o isqueiro (abandone um de vez em quando, deixe com alguém, as pessoas são loucas para afanar isqueiros), a caneta-tinteiro (Montblanc fez a melhor oferta). Topa usar piercing? Acho que não, você é careta.
— Careta é a boceta da sua mãe que nunca fodeu com ninguém a não ser seu pai. Como vou me lembrar de tudo isso?
— Planilhas, planilhas colocadas nas paredes do quarto.
— Vou ter de aumentar meu closet. Posso ficar com os quartos das empregadas.
O terapeuta silencioso
Tantas vezes Letícia insistiu, mandou, pediu, ordenou. Fui. Quatro sessões.
— Gostou?
— Não!
— Sabia. Você resiste. Conta. Como foi?
— Fui lá, ele disse: pode contar. Respondi: pergunte. Ele: fale. Como começar? Pelo começo. E eu: me oriente. O terapeuta: você é que veio me procurar, se abra. Ri, estava já ficando emputecido: vim aqui aprender a me abrir. O analista do cão: então, comece a se abrir, fale. Um puto. Não me dava a brecha. Não vai perguntar? Ele disse que não. Então, vamos ficar olhando um para a cara do outro. Pois fique, disse o cão chupando manga. E me olhou. Olhei para ele. O analista canalha não desviou, ficou me enfrentando. Não desviei os olhos. Sabe como meus olhos fuzilam, quando estão com ódio. Ficam quentes. Se tive ódio de alguém, um dia, foi nessa tarde. Um truqueiro. Esses terapeutas são truqueiros. Se preciso ficar falando, falo com motoristas de táxi, são loucos por uma conversinha. De repente, ele olhou para o relógio, como se estivéssemos jogando xadrez e marcando o tempo, e me disse: terminou por hoje. Volte amanhã. E eu: Pensa que vou voltar? Nunca, nunca. Voltei, foi igual. Por que o cara não arranja uma revista de sacanagem, dessas cheias de bocetas abertas e não fica lendo, enquanto espera o paciente falar?
— Em todas as sessões não avançou nada?
— Podia?
— Pagou para ficar calado?
— Sustei o cheque
Você é jovem, é louco e está na cama com facas
Sabe como é: você é jovem, é louca e está na cama com facas.
Sabe como é: você é jovem, é louco e está na cama com facas.
Adapto. Roubo. Repito a mim mesmo a frase de Angelina Jolie, porque parece perfeita como construção, síntese, conceito. Foi publicada em todos os jornais americanos, traduzida para o mundo, citada em televisão e em artigos, como o do The New York Times por Ricky Marin. “Sabe como é: você é jovem, é louco e está na cama com facas.” Foi ela quem disse ou o assessor preparou? Não penetro ainda em certos meandros da mídia, o que me deixa com um travo na boca. Porra, daria um quinto de minha vida por uma frase assim que faz pensar sobre a vida no hemisfério ocidental. “Sabe como é: você é jovem, é louco e está na cama com facas.” Angelina, aquela que anda com um vidrinho de sangue do marido, é uma das sensações da nova Hollywood, filha do ator John Voigt, lembrado por um grande filme Perdidos na Noite (Midnight Cowboy, direção de John Schlesinger, 1969). Quantas novas Hollywoods existiram? Tenho um caderno de frases, escrevo e reescrevo, elas precisam ser claras e evasivas. Talvez vocês possam me ajudar a pensar, melhorar, enviando sugestões para meu endereço eletrônico. Como realizar a interação com pensamentos? Que porra de nome mais esquisito, endereço eletrônico. Vejam esta: “A simplicidade reside no oculto transparente, na revogação do eu dispensável, na alteração de estruturas anacrônicas”. Dará o que falar, será repetida. “Eu dispensável” pode até pegar, entrar para o coloquial. Quando uma expressão faz parte do cotidiano, você se consagra. Sabe como é: você é jovem, é louco e está na cama com facas. Sabe como é: você é jovem, é louco e está na cama com facas. Adeus cotidiano mesquinho! Aplausos Pla pla pla pla pla pla pla pla pla pla pla pla. pla pla.
Pobres, feios, sujos, malditos e feche a janela do carro
Há também outro caminho para reconstituir (forjar) o meu passado.
Imaginar, já que vida é fraude.
Cada um conhece bem a sua, sabe onde patina em falso. O ideal será transparecer que fui pessoa nascida pobre, sem as condições para ser alguma coisa. Pobreza emociona. Desde que seja a dos outros, esteja longe, restrita aos noticiários, não nos atinja. Pobreza é curiosidade quando estamos distanciados dela pelas grades das casas, pelas janelas fechadas de nosso carro, pelas portas travadas, gozando o ar condicionado.
A babaquice predomina: fazer-se por si mesmo.
Do it yourself.
Os que se fazem emocionam os incapazes e os sentimentais e são considerados excepcionais e modelos. Paradigmas. Pessoas que, como vencedoras, escrevem artigos para revistas, fazem palestras em convenções de empresas (nesses encontros onde há sempre um show com as bundudas do tchan), cagam regras sobre o se fazer, pregam a autoconfiança, publicam livros e escrevem manuais que se tornam bestsellers. É o que pretendo com estes fragmentos de vida.
O público precisa das imagens dos vencedores, para sonhar. E adoram as histórias dos perdedores para sofrer, pensar e se consolar: não sou assim.
Percebo minha confusão. Necessito de um Assessor para o Passado. Um especialista que me dê as coordenadas do que fiz, do que deveria ter feito, de como teria me comportado, vivido. Cuidado, regras de comportamento mudam! O que era escândalo nos anos 60, provoca risos e deboche hoje. Leyla Diniz abalou o Brasil posando de biquíni; estava grávida. Abalou o governo. Norma Bengell mostrou os pentelhos em Os Cafajestes. Multidões correram para ver. O presidente Itamar posou ao lado de Lílian Ramos que estava sem calcinhas, exibindo a xoxotona. Deu o que falar.
Um homem deve ter atitudes que mostrem coerência de ações e pensamentos, li numa revista de laboratório, onde fui fazer ultrasom da próstata e do fígado. Estava desconfiado de uma hepatite, tenho bebido muito, devido à pressão interna que sofro. De tempos em tempos vivo um período difícil, complicado.
Agora, tomo bebidas baratas, Cynar, vermute, Fogo Paulista, conhaque de alcatrão. Quando for célebre, poderei tomar absinto (voltaram a fabricar), como Toulouse Lautrec ou Modigliani, comprar drogas, das leves às pesadas, injetar na veia, tomar ópio (existe no Brasil?), fumar haxixe em narguilés.
Aqui, droga barata é o crack, mas só vendem para crianças no centro da cidade. Tentei comprar, os policiais que dominam o mercado desconfiaram, me deram um chega para lá, apanhei muito mesmo.
Porra! Dói apanhar!
Me machucaram bem.
Nunca mais quero comprar drogas da polícia, só de traficante mesmo!
Fins de semana corretamente produzidos
Ando intrigado com uma questão não focalizada com seriedade em livro, jornal, revista, ensaio. Como os famosos passam o fim de semana? Não me refiro aos finais de semana programados para fotografias, produzidos e encenados por assessores de imprensa. E sim aos finais de semana autênticos, reais. Se é que existem. A partir de um determinado momento na vida de uma pessoa cujo cotidiano aparece estampado constantemente na mídia, a realidade real desaparece, permanece a virtual (termo na moda). O leitor não se cansa? É insaciável? Há um instante em que real e ficcional (fatos produzidos pelas assessorias) se confundem, se mesclam, a ficção se torna realidade e esta se dissolve na fantasia.
(Rever o termo assessores. Foi limado do vocabulário hipado. Agora, se usa guru, um eufemismo. Palavra mais elegante, ainda que um tanto quanto anos 60. Pesquisas mostram que os gurus, principalmente os indianos andaram em moda na época dos Beatles. Agora, se diz o guru. O guru da estética facial, guru vocacional, guru da cultura, guru da expressão corporal, o guru da dança, guru dos termos em uso, guru das grifes a se usar, gurus dos lugares a freqüentar)
Preciso saber sobre fins de semana que seriam normais, para normais. Não foi Caetano Veloso quem cantou: “de perto ninguém é normal”? Atos banais como o levantar, espreguiçar, escovar dentes, tomar banho, tomar café da manhã (como é o café da manhã de um célebre? Dietético, organizado pelos regimes para manter físico, mente, pele em forma?), fazer ginástica, ler os jornais, sair com a família. Os célebres vão ao shopping, procuram um sapato, uma camiseta, entram na papelaria para comprar um caderno para os filhos, mandam consertar o carro? Alguns têm como hobby a mecânica, a bricolagem, a marcenaria, a fotografia, pintura, vidros jateados, escrever diários, navegar na Internet, manter chats com gente do mundo, montar modelos, catalogar coleções?
O que revela neles o comum, o ser de carne e osso, medos, alegrias?
Existe em uma dessas estantes um livro que encontrei há anos. Hollywood At Home, A family Album, 1950-1965. Fotos de Sid Avery e texto de Richard Schickel. Nele se vê Humphrey Bogart e Laureen Bacall na sala, brincando com o filho. Ernest Borgnine e sua mulher Rhoda, uma gorda, lendo jornal com a filha no colo. O cantor Frankie Laine dirigindo um Cadillac e dando adeus à família, ao sair para o trabalho. O clima da foto é matutino. Um sol leve ilumina a fachada da casa e as prosaicas cerquinhas de madeira branca do jardim. Paul Newman e Joanne Woodward na cozinha de sua casa, ela afagando o cachorro e ele preparando ovos (seriam mexidos?). São dezenas de superstars apanhados na “intimidade”. Essas fotos vão atravessar décadas, cruzarão o século. Mitos em instantes mortos.
Já tenho o roteiro de como pode ser a produção de fotos para um editorial sobre a minha intimidade. Preciso emprestar móveis de algumas lojas, tapetes, luminárias, objetos. As legendas explicarão a procedência e os preços. É como se tivesse comprado e decorado minha casa. A imprensa vive de serviços, o leitor quer saber onde e quanto, e somos referenciais. Depois das fotografias, tudo é devolvido, ainda que muitas vezes revistas e produtores fiquem com algumas peças, como “pagamento” pela divulgação.
O sistema funciona engrenado entre mídia e assessores (digo gurus) dos famosos e os das lojas, em uma engrenagem natural, como o das famílias mafiosas. Se for servida alguma comida, o restaurante ou rotisserie leva crédito. Todas as mãos lavadas, todos satisfeitos. A menos que o célebre não seja tão célebre, apenas aspirante. Ou um desses desesperados anônimos que a imprensa designa como quase famosos, ironicamente, e fazem tudo para participar das Casas dos Artistas ou dos Big Brother Brasil, conhecidos como BBB, porque tudo se torna sigla, se minimiza.
Olho as fotos (mínimas, coitado) do cantor que foi eliminado de um reality show (o inglês é a língua corrente na mídia) e conseguiu desfilar em 14 escolas de samba no carnaval. Foi a esperança de ser fotografado, aplaudido (o público não tinha idéia de quem ele era), aparecer, ter consciência de que existia. Estava tentando quebrar um recorde, acreditando que entraria para o Guinness, nada conseguiu, foi ironizado.
Matou-se na pista do sambódromo, na noite do desfile das escolas campeãs, sua morte foi mantida em segredo, para não atrapalhar a festa.
Anônimo célebre, de Ignácio Loyola Brandão, será lançado este mês pela Global.