para Marçal Aquino
Na noite de 14 de outubro de 1970, em um cubículo imundo do bairro londrino de Kensington, cercado de hippies piolhentos de todas as partes do planeta, Torquato Neto espera a chegada do Grande Guitarrista. Com um spliff de haxixe em uma mão, passando depois de um gole a garrafa de uísque a Carlo, o taitiano molambento sentado ao seu lado, Torquato Neto, em total estado de confusão mental, espera a chegada do Grande Guitarrista.
A babel polilíngüe confinada ao apartamento de Noel, um chileno expatriado, anseia pela prometida chegada do Grande Guitarrista, enquanto Torquato Neto pensa em areia branca, recortes verdes contrapostos ao céu luminoso, mesas desmontáveis dos camelôs de badulaques e um veloz ônibus azul em movimento pelas avenidas da Guanabara. Ao ouvir o burburinho excitado dos convivas, Torquato Neto levanta os olhos e vê o Grande Guitarrista Jaime Hendrix, com os olhos esgazeados e um grande chapéu de plumas lilases ser inicialmente emoldurado pelo batente da porta do apartamento, para depois ser coberto pelos festejos dos cabeludos.
Um pouco enjoado, Torquato Neto entra no cômodo do apartamento abarrotado de cabeludos à procura de ar. O quarto minúsculo está repleto de plantas e objetos místicos, estatuetas de ídolos orientais e pôsteres de ídolos ocidentais. Entre um enorme cartaz de Jaime Hendrix solando sua guitarra com os dentes e outro de Jaime Hendrix incendiando sua Fender Stratocaster, encontra-se o próprio Grande Guitarrista. Sentado em um tapete persa, ele parece flutuar a alguns centímetros do chão, ao menos para os olhos chapados de Torquato Neto. O Grande Guitarrista tem um ar enfarado de quem precisa de algo ausente e olha com um ar suplicante para Torquato Neto, que se aproxima intrigado. Diante de Jaime Hendrix, uma poça de vômito reflete a clarabóia, permitindo entrever as luzes trêmulas dos postes encobertos pela neblina da noite londrina.
Jaime Hendrix quase atinge o teto do pequeno cômodo diante dos olhos atônitos de Torquato Neto, que pensa nas dunas de Ipanema, em bananais na restinga e nas águas azuis de um lago. Essas imagens misturam-se com a figura do Grande Guitarrista, flutuando sobre um tapete persa, alguns metros acima da cabeça de Torquato Neto. De repente, após algumas regurgitações, Jaime Hendrix põe-se a vomitar longamente, sem que isto interrompa a sua levitação. Fora da janela do apartamento, as luzes e a balbúrdia daquelas noites londrinas dos anos 60 vibram sob uma chuva fina e ininterrupta, enquanto Torquato Neto desvia-se dos jatos de vômito lançados por Jaime Hendrix. Este, após se aliviar, começa a descer das alturas nas quais se encontra, olhando para Torquato Neto com um ar divertido, perguntando: “Nosferatu?”. Torquato Neto, no seu delírio imerso em abacaxis e mulatas, filmes super 8, parangolés, pássaros cantando nos hospícios e numa cachaça límpida que despenca aos borbotões pelas paredes, abre sua capa negra, vibrando-as contra as costas, como se fossem as asas de um morcego gigante. O Grande Guitarrista sorri e pede para Torquato Neto se aproximar. Torquato Neto recebe então um passe das mãos de Jaime Hendrix e sente sua capa movimentando-se novamente, e seus pés não mais tocam o chão.
As areias brancas afundam sob os pés de Jaime Hendrix e a lagoa do Abaeté ao fundo reflete os raios do sol. Torquato Neto eleva entre o rosto de Jaime Hendrix e o sol uma taça super-cristalina de cajuína, que mancha de amarelo e magenta a pupila negra de Jaime Hendrix. Os olhos negros do Grande Guitarrista resplandecem de luz amarela e sua cara preta enruga-se para enfrentar a luminosidade intensa da lagoa: um prata só. Torquato Neto passa-lhe a taça e Jaime Hendrix vira de um só gole a cajuína, lambendo com a língua vermelha as gotas perdidas da bebida amarela sobre a pele preta num grande cchhhhlap. Os cabelos compridos do nosferatu Torquato Neto revoam, imiscuindo-se à sua capa negra de vampiro. Uma grande sombra tridimensional projeta-se sobre as plumas lilases do Grande Guitarrista, matizando sua cabeleira black power com fitas multicoloridas, que encabeçam seu corpo esguio exibindo camisa e saint-tropez bufantes, como se fosse uma enorme torre de eletricidade recortada contra a garrafa amarela de cajuína vibrando contra o céu azul, entre o prata da garrafa, a lagoa prateada e a cara quase preta de Torquato Neto observando uma figura que corta a linha do horizonte e segue em sua direção. Conforme a silhueta barbada e cabeluda aproxima-se, Torquato Neto consegue vislumbrar as feições do escritor José Agrippino de Paula, totalmente despido e envolto numa nuvem de maconha. Jaime Hendrix entorna a garrafa e sua cor preta vai se tornando amarela, primeiro a testa fica amarela, depois os olhos, daí o nariz, Jaime Hendrix bebendo e amarelando. José Agrippino de Paula, que agora está acompanhado por Maralina Monroe e Zé Di Maggio, põe as mãos em concha sobre a boca e berra “Torquinha!”, enquanto Jaime Hendrix dá o último gole e o trio, a cajuína, a lagoa e as dunas simplesmente desaparecem.