Toda despedida é igual

Toda despedida é igual, e triste na mesma medida. Independe de amor, ah, auto-estima, orgulho vital dolorosamente ferido. Tamanha dor só o próprio coração é capaz de infligir
01/06/2000

Toda despedida é igual, e triste na mesma medida. Independe de amor, ah, auto-estima, orgulho vital dolorosamente ferido. Tamanha dor só o próprio coração é capaz de infligir.

O pensamento igual de uma despedida eternamente igual. Raia o dia seguinte da despedida sempre à noite, e aproxima-se do peito aquela dor distante. Discurso trágico similar.

Então, que há por dizer? Pensa, coração ferido, imagina diálogos inexistentes, ensaio de voz ao telefone mudo, pigarro, como está a garganta? Vamos começar?

Hoje é dia e faz sol, é dia seguinte e há vida, voz ainda existe, pode falar — ontem não poderia, ah, paralisia aguda de tristeza —, desabafar as restantes muitas dúvidas (orgulho, canário anil lindo que sangra), pesar e lamúrias.

Apaixonado consciente — regra de exceções —, percebe: o que marca nessa ausência é um desabrochar de saudade, nostalgia da imensa saudade que nunca mais voltará. Tempo, verme que vivo nos come, frágil Homem. Tão poucas palavras na língua, tantas brincadeiras perdidas, um mundo que se desfez — como é trágica a demissão. Na frente do espelho, telefone na mão. Pigarro, garganta boa? E então, o que fazer?

Confessar. Quanta humildade no coração esmagado! Canário travestido, pensa bonito enganar. Se é forte procura, medo telefona, pavor escreve letras tortas e pinguinho milimétrico de saudade no canto da folha, para heróico lá constar, mas sem fazer a tinta borrar. Feio sentimento de rasuras. Que amor dissimulado e verdadeiro, crime perfeito! Primeira vazão, pensar não haver nada por falar. Mas descobre se tenta, palavras querem mesmo é quem nada tem a falar, ah, como se fazem então gentis, abundantes, necessárias! Coração magoado anseia desaguar oceano de única vez. Fala, escreve.

Ah, o que terá acontecido ao ex-eterno-amor? Bonzinho nem responde, palavra torta no seguinte dia pode matar, o bote da serpente desilusão. Ouve desculpas, tenta reinar. Fala-se dos últimos difíceis relacionamentos, do amor que partiu, flor que murchou. Não elogie novamente, traduz nomes horríveis, ofende, cospe na face que tanto horror causou. Tudo é permitido, menos o agrado, que confunde e oprime: por que despedir, então? Defronte o amor despedido não fala nada, pois nada é passível de compreensão. Paixão, não use palavras denotativas nem expressões booleanas, carranca o outro rosto e silencia o próprio falo. Melhor.

Desabafo, depois aliviado. Descobre, enorme decepção supera a dor. Ah, certeza infame de poder fazer feliz o amor que partiu! Pretensão repetitiva, a memória magoada torna todos felizes no amor que era. Perdoa a gagueira e demais rastros de sal nesses dias de submissão e carnaval. Acabou. Mas sempre com ácida interrogação mínima no peito.

Para bem estragar a magia da despedida, que seja rápido o golpe. Há de retornar tudo — que nunca mais será assim tudo — antes que o verme do tempo pedaços coma, insaciável, e torne tudo como sempre será. Além de finito, pouco dura amor pós despedida. Saudade de gostar vem, vem lágrima e solidão, mas o coração não aceita mais antigo locatário no velho lar.

Até que se mastigue pétala de bálsamo para tudo bem descobrir. Assim seria e para sempre foi. Ai, paz do sacrifício. Consciência, pensa bem (retornou algum outro pensar?), não precisa mais voltar, carece não. Fotografia amarela da memória, tão caro restaurar!

Não volte, amor demitido. Toda despedida é triste, mas é igual e passa. Igual essa que passou.

Renato Essenfelder
Rascunho