Não acredito em predestinação, espiritismo nem nada parecido. Acho que o mundo e a vida devem não fazer nenhum sentido, e na maior parte do tempo até torço para que não façam. Mas admito que há situações em que o Mistério parece ser a única explicação. Aliás, elas não são poucas. Conheci um velho cônego que dava aulas numa faculdade interiorana e, a cada pergunta embaraçosa que um aluno lhe fazia, sempre se saía com esta: “O Homem é um mistério”.
Não sei se o homem, mas com certeza meu tio Dieter, que para começar nem era meu tio; era tio de um amigo, mas vários de nós, minha turma de colégio, o adotamos como parente por admiração — ou seria espanto? — do seu jeito de ser, para o qual a melhor definição quem deu foi minha mãe. Ele era roliço sem banda. Roliço sem banda queria dizer alguém que “não tinha lado da gente chegar”, especificando melhor o conceito de Dona Escolástica, cujo nome combinava bem com a mania e o talento, que ela inegavelmente os tinha, de rotular coisas e pessoas. Combinava também com nossa cidadezinha perdida entre montanhas acanhadas, quase uns outeiros, que não existe mais, pois foi recoberta por camadas de tempo que a tornaram (como a mim mesmo, provavelmente) irreconhecível para quem não a veja todo dia. O cotidiano é a única continuidade que existe, o resto é caos e… “mistério”! Afinal, parece que o cônego Benedito estava certo.
Dieter era descendente de alemão, daí o nome, mas de alemão não tinha nem aparência nem espírito. Era, e tornou-se ainda mais ao longo da vida, um típico habitante do sul de Minas Gerais; quer dizer, meio caipira paulista, meio citadino mineiro. Tal como o recordo, já bem para além dos 30 anos, era quase careca e tinha uma barriga já desabando sobre o cós da calça — que correia ele não usava, por isso vez por outra andava com a bunda meio de fora, especialmente quando bebia. E como bebia, foi algo em que se especializou desde seu casamento com uma moça a que se afeiçoou mais pelo costume e pela inércia do que por encantos que ela tivesse. No interior, muitas vezes o sujeito se casava mais com o sogro e os cunhados do que com a consorte afinal escolhida, até mais aceita por decurso de prazo do que pela constância do amor e das afinidades.
Roliço sem banda, isso ele era e ficou muito mais. Ainda solteiro, trabalhava num negócio que todo mundo chamava de resfriador. Resfriador era um lugar onde o leite recolhido nas fazendas da região ficava à espera do caminhão que o levaria ao laticínio. Nesse tempo, contava meu amigo seu sobrinho, começou a destoar dos irmãos morigerados — pois Dieter tinha dois irmãos, ambos empregados de um posto de gasolina, que eram o retrato irretocável das virtudes interioranas; nem bebiam, nem ficavam até tarde pela rua, nem pulavam cerca. Nem nada.
Pouco antes de se casar, Dieter entrou de sócio num açougue e logo depois ficou dono sozinho. Talvez porque o parceiro já o tenha achado roliço sem banda. Por conta disso já o conheci sem a metade do dedo médio da mão direita, torado no toco usado para picar as reses e o porcos abatidos. Claro, ele precisava de ser canhoto.
O açougue durou pouco. Tio Dieter havia herdado, com a morte da mãe, uns alqueires de terra onde começou a criar seus próprios bois. Comprou também um trator, e andava arando e gradeando terras alheias. Logo em seguida, entrou a negociar com automóveis. Enfim, um empreendedor. Só que em poucos meses, quanto mais crescia o tédio do casamento, mais aumentava a fatia da semana que ele passava sumido o dia todo, chegando a casa altas horas, sempre caindo na cama sem banho, de roupa e tudo.
Diriam alguns que o problema era a falta de um filho. Diriam outros que estava a manifestar-se a herança genética, pois seu pai havia sido um consumado paranoico, dormia com o revólver debaixo do travesseiro e acusava a mulher de ser outro o genitor do filho mais novo, justamente Dieter. As sabidas e consabidas virtudes matrimoniais de dona Emerenciana desautorizavam a suspeita, isso era publicamente admitido. Então, podia ser que estivesse começando a germinar o grãozinho de loucura trazido de além-mar (a loucura do avô, essa é outra história). Mas o que dizer da exemplaridade insossa dos dois irmãos mais velhos?
Havia a festa de São Pedro, que consistia em uma semana de atividade simoníaca direta e indireta plantada, na forma de barracas disso e daquilo, mais um pequeno parque de diversões, no campo de futebol da nossa cidadezinha. Em certo domingo, Dieter entrou nela com seu trator e gradeou o campo, levando enganchadas na rabeira várias barracas. Foi a primeira coincidência notável de seu destrambelho com a tragédia financeira, pois, honesto até a medula, uma vez saído da carraspana ele procurou todos os prejudicados e pagou-lhes pelos danos, “choro em cima do defunto”, como ele gostava de dizer, e seu repertório de expressões figuradas também é uma outra história.
Daí por diante, ladeira abaixo. Emprestava cheques e depois não se lembrava a quem. Comprava e vendia na certeza do lucro, mas ao fazer as contas os números vinham dizer-lhe o oposto. E trabalhar, de ter onde tirar o sustento da família, isso cada vez menos, até chegar ao nada. Junto chegou a necessidade de vender as terras, e então a espiral da ruína se prolongou por mais alguns anos na gastança do capital que sobrou. O filho não queria vir, para isso tendo boas razões em sua insistente inexistência.
Dieter, no entanto, era um coração extremamente generoso. Tinha capacidade de trabalhar de graça o dia todo, laçando e amarrando novilhos para serem vacinados na fazenda de um primo ou tio. Certa vez, viajou de carro mais de 100 quilômetros para ajudar um sobrinho recém-casado a mudar-se de casa. Defendia os fracos em brigas de bar, arranjando inimigos de um lado e admiradores do outro. Em compensação, jactava-se de haver tirado a virgindade de uma moça da roça que depois o chamou para padrinho de casamento.
Já não tinha trator nem terras. Uns poucos bois que às vezes comprava, engordava-os em pasto alugado. Foi quando lhe ocorreu o primeiro acidente de carro: capotou uma Kombi, que havia comprado sabe-se lá por quê, e ficou prensado entre um barranco e uma porta do veículo meio derreado. Mas era um cavalo de tão forte. Ficou meio estropiado uns dias, passou, voltou forte como sempre.
Mais grave foi quando atropelou um garoto. Descia uma ladeira a bordo do fusca da vez, o menino atravessou a rua correndo atrás de um cachorrinho fugido. Foi muita sorte o moleque não ter quebrado nada. Mais sorte ainda, Dieter não estava bêbado. Eram duas da tarde.
Mas, então, de remediado, estava quase chegando a pobre. Roliço, a barriga sempre a crescer não desmentia; sem banda, também foi ficando cada dia mais, porque a ruína o ia tornando intratável até mesmo para as pessoas de quem mais gostava. Nunca maltratou fisicamente a mulher, mas quem poderia adivinhar como ela se sentia? Nunca ela se queixava, a ponto de nem se precisar aqui mencionar seu nome. Tudo tem significado quando se conta uma história.
Foi quando ocorreu o penúltimo capítulo. Dieter vinha voltando de sua ronda diária quando passou ao lado de uma lavoura de milho. Eram oito da noite, hora de estar no último boteco para não chegar muito ruim em casa. Lembrou-lhe que uma das cunhadas gostava demais de fazer curau de milho, mas morava numa casa cujo quintalejo mal dava para criar três ou quatro galinhas. Na sua moral rascunhada, duzentas espigas não fariam falta a quem tinha tantos alqueires de milho. Também, se ficassem sabendo e lhe cobrassem, pagaria sem reclamar, choro em cima do defunto. A parte de trás da Brasília 77 ficou atopetada de milho verde.
Ao sair do bar, errou feio uma curva e entrou com o carro bem na parede da igreja pentecostal Línguas de Fogo (não esse o verdadeiro nome, talvez, mas era uma expressão de estilo semelhante). De novo, a sorte: não era noite de culto. Esses detalhes eu só conto por conta de os ter ouvido tantas vezes do Márcio, que ria muito ao relatá-los. Ele dizia que enquanto estava lá, tentando fazer uma média com os policiais militares chamados a registrar a ocorrência, Dieter andava de lá para cá e duas vezes falou ao ouvido do sobrinho: “Não gosto desse bicho!”. Os homens da lei, é claro, escutavam, mas isso deve ter tido pouca ou nenhuma influência a respeito da noite que passou na cadeia. Tampouco essa noite lhe teve mais valia do que passar 15 dias escondido em casa, morto de vergonha, não querendo ver nem ser visto por ninguém.
Teve o epílogo, e nele mais uma vez se conjugaram a tragédia financeira com a existencial. Dieter tinha vendido sua casa com a intenção de construir outra, depois vendê-la e construir duas, muito parecido com aquele conto da mulher que levava na cabeça um jarro de leite. Ocorreu que, como parte do pagamento, entrou no negócio um Vectra quase zero-quilômetro. O tipo do carro que ele nunca teria para uso. Só que, quando passou adiante o carrão, recebeu como pagamento um cheque sem fundos. E o safado do comprador, por sinal seu velho conhecido, como se diz voou na capoeira. Ficou pouco mais da metade do dinheiro da casa, e dentro do peito um vazio que não podia ser preenchido senão com cachaça. Cachaça barata, que Dieter já estava quase no ponto de engolir querosene, como certos bebuns em fim de carreira.
Mesmo assim, podia ter sido diferente. Podia, se ele fosse outra pessoa. Então, sua mania ambulatória ficou ainda mais intensa, não havia um dia em que não saísse cedinho e voltasse só perto da meia-noite. E gasolina, como se sabe, também custa dinheiro.
Certa noite, voltando de uma cidade vizinha aonde vagas razões o haviam conduzido, entrou na sua frente um carro com os faróis apagados. Ele não teve chance de se desviar; com a batida, seu Uno Mille rodopiou na rodovia e foi bater numa retroescavadeira estacionada ao lado do restaurante Peixe Frito, àquelas horas ainda cheio de fregueses.
Mesmo assim, podia ter sido diferente se…
…se Dieter usasse cinto de segurança. Mas ele não usava, e por isso, foi lançado de costas contra uma enorme pedra. Ainda era forte como um cavalo; quebrou várias costelas, que lhe perfuraram os pulmões, passou mais de uma semana no hospital. Aí, morreu, não dos ferimentos, mas da uma infecção que eles causaram. Nunca vi tanta gente chorando como em seu enterro. Acho que as pessoas choravam, em sua maioria, sem saber por quê. Talvez porque tivessem a intuição de que algo ali, algo que não compreendiam, dizia respeito a um mistério do qual cada um fazia parte.