Time de coração

Conto inédito de Jorge Ialanji Filholini
Ilustração: Carina S. Santos
10/05/2023

O impedimento é a regra mais subjetiva do futebol eu imaginava isso sobre meu irmão mais velho esteja à frente ou atrás da linha será sempre uma escolha interpretativa meu irmão mais velho se equilibrava na faixa do mistério meu irmão mais velho passou a ser a incógnita que levei para a vida meu irmão mais velho não foi a meu nascimento nasci em um domingo e meu irmão mais velho costumava jogar futebol com os amigos meu irmão mais velho jamais quis me pegar no colo chamava minha mãe para resolver as pendências estomacais e urinárias meu irmão mais velho evitava me dar comida na boca dizia ser coisa de mulher fazer aviãozinho meu irmão mais velho cuidava dos encanamentos e esgotos de brutamontes que zoassem sobre ter uma bicha na família meu irmão mais velho chegava em casa de madrugada embriagado meu irmão mais velho se escorava no corrimão da entrada do prédio meu irmão mais velho cambaleava no vão da porta da sala meu irmão mais velho perdia a chave meu irmão mais velho abria a porta do quarto se aproximava da cama meu irmão mais velho tinha cheiro de alfazema meu irmão mais velho cobria com a gola o pescoço polvilhado de purpurina meu irmão mais velho usava apenas à noite sombras nas pálpebras meu irmão mais velho me observava dormir meu irmão mais velho em silêncio estudava nossa fisionomia meu irmão mais velho corria a mão por minha testa meu irmão mais velho falava baixinho a meu ouvido para eu nunca ser viado senão me caparia e me faria engolir as próprias bolas recordo de seu suor e do bafo seco com odor de caixa de papelão úmida meu irmão mais velho me obrigou a escolher um time de futebol meu irmão meu irmão mais velho ordenava a casa toda a assistir à partida das dezesseis horas meu irmão mais velho comprava o jornal e me fazia ler as matérias de esporte meu irmão mais velho não gostava de arte e ninguém também precisava gostar meu irmão mais velho escolhia as roupas batidas roupas de brechó meu irmão mais velho não me deixava usar bermudas meu irmão mais velho comprava meias cor de taco meu irmão mais velho tinha um amigo o amigo dele era dono do brechó se chamava seu Honório afilhado de meu irmão mais velho seu Honório tinha bigode do tamanho de rodo de pia as sobrancelhas acompanhavam seu gigantesco aspecto peludo jamais o vi sem pelos se tivesse raspado a cara seu Honório seria outro seu Honório um seu Honório com cara de gente como meu irmão mais velho dizia meu irmão mais velho não gostava de pelos fazia a barba toda manhã demorava no banheiro arrancava pelo por pelo uma maldita falha natural que deus desviou em nossos corpos meu irmão mais velho dizia que os pelos deixavam o homem mais animal selvagem fera um ser das cavernas obsoleto e burro o cérebro é liso e é o que mais usamos meu irmão mais velho me ensinava a cortar cada centímetro de pelugem meu irmão mais velho se sentava no vaso sanitário cor verde-malva meu irmão mais velho ficava pelado e abria as pernas meu irmão mais velho colocava um banquinho grená de madeira de frente ao azulejo bege meu irmão mais velho equilibrava o espelhinho de quinze centímetros e com moldura plástica alaranjada meu irmão mais velho refletia a imagem de seu pau meu irmão mais velho esparramava sabão na virilha meu irmão mais velho deslizava a lâmina da esquerda para a direita meu irmão mais velho nunca se feriu meu irmão mais velho terminava a raspagem passando álcool na pele meu irmão mais velho me levava para ver futebol no campo meu irmão mais velho encostava no isopor do Mauricio e bebia latinhas de Skol antes do jogo meu irmão mais velho aguardava a torcida organizada chegar nos portões do estádio meu irmão mais velho gostava de assistir à partida no tobogã meu irmão mais velho tinha três amigos o Jonas, o Paulo e o Gomes meu irmão mais velho arquitetava com eles uma briga entre torcidas na saída do estádio meu irmão mais velho socou um garoto de dezesseis anos na esquina ainda nos acréscimos do segundo tempo meu irmão mais velho não satisfeito chutou a boca do rapaz três vezes meu irmão mais velho guardou os dentes do garoto para mostrar aos amigos meu irmão mais velho me instigava a brigar meu irmão mais velho queria me ver extravasar o ódio meu irmão mais velho só não sabia do tamanho do punho de fúria que eu tinha contra ele acompanhei meu irmão mais velho uma última vez ao futebol meu irmão mais velho não chegou a entrar com o público meu irmão mais velho corria da polícia encontrei meu irmão mais velho três dias depois meu irmão mais velho estava com o braço engessado, olho roxo e os lábios cortados meu irmão mais velho parecia um bicho meu irmão mais velho não conseguia fazer a barba meu irmão mais velho agora caça fareja sua presa se mantém sem som por segundos antes de dar o bote meu irmão mais velho segura a respiração é nesse momento que percebo que meu irmão mais velho é humano e sendo humano pode morrer basta prender o ar meu irmão mais velho gosta de falar mal de futebolistas e sorria logo em seguida queria um dia ser seu pensamento com paredes acrílicas sem sombra de neurônios carente de esconderijos só para saber para quem ele gargalhava derrubar os alvos gigantes construídos ao redor de sua intimidade meu irmão mais velho tinha sua privacidade intocável meu irmão mais velho gostava de não brincar meu irmão mais velho mirava seu olhar de ódio em mim em mamãe em seu Honório em Juliana nossa irmã em Paulo da empresa de esgoto no cliente a reclamar do estouro da torneira meu irmão mais velho mirava nele próprio a se acovardar por não dar um fim a si mesmo e imaginava um tiro certeiro no peito nuca ou fígado meu irmão mais velho me bateu quando eu disse ter feito vestibular para Pedagogia a orelha vermelha a cabeça desnorteada perdi o equilíbrio como um louco quando tem sua liberdade decretada e corre pelas ruas até ser atropelado pelo primeiro caminhão em alta velocidade meu irmão mais velho pegou meus brinquedos meu irmão mais velho os levou até o fundo do quintal meu irmão mais velho os jogou dentro de um latão de ferro meu irmão mais velho despejou querosene meu irmão mais velho queimou todos meus bonecos de herói meu irmão mais velho me obrigou a vê-los derreterem meu irmão mais velho me fez detestar o cheiro de plástico queimado meu irmão mais velho não foi a minha formatura meu irmão mais velho nunca verificou minhas notas meu irmão mais velho me disse quando me formei que eu podia ir embora meu irmão mais velho sem palavras apenas raiva queria uma faca na mão meu irmão mais velho sempre me deixou em sua mira meu irmão mais velho me tinha como alvo meu irmão mais velho não hesitou quanto a minha saída meu irmão mais velho não deu conselhos meu irmão mais velho evitou o discurso meu irmão mais velho ficou na cozinha bebendo cachaça meu irmão mais velho não fechou a porta da frente quando parti meu irmão mais velho nunca me visitou meu irmão mais velho morreu quando fiz quarenta e dois anos seu Honório me enviou o telegrama meu irmão mais velho economizou na fala meu irmão mais velho foi enterrado vinte quatro horas depois fazia frio e um cachorro cinza mijou nas coroas de flores meu irmão mais velho deixou a casa abandonada garrafas de cerveja espalhadas giletes na pia do banheiro meu irmão mais velho não dobrou as toalhas meu irmão mais velho largou em cima do móvel da cabeceira a bíblia aberta meu irmão mais velho nunca confessou o motivo de odiar homens meu irmão mais velho havia escondido na gaveta embaixo das camisetas do time de coração perucas coloridas potinhos de glitter fotos de rapazes sem camisa um batom cor de avelã e os meus bonecos chamuscados.

* O conto Time de coração integra o livro Muqueta, a ser lançado em breve pelo selo EditoRia.

Jorge Ialanji Filholini

É autor de Somos mais limpos pela manhã (Demônio Negro, 2016), finalista do Prêmio Jabuti, e Somente nos cinemas (Ateliê Editorial, 2019).

Rascunho