João, o Vermelho, Yannick, na verdade, treinador de futebol, confessa na cadeia, abrindo as cortinas de sua alma diante de um seminarista desconhecido na tentativa de compreender porque cometeu o crime terrível que o levou para trás das grades. Ele não ama o filho e não o perdoa por não ter talento, mas acaba escolhendo-o como titular por culpa, uma culpa ancestral, deixando um centro-avante talentoso na reserva, antes mesmo de saber que este, rival do filho, também destruiu a vida dele, do pai, numa rivalidade ainda mais íntima. O seminarista, que de sua parte não consegue amar o próprio pai, apenas ouve, apesar de também ter suas perdas (como a do trecho abaixo), enquanto vai se aproximando cada vez mais do estranho homem à sua frente, que não pára de contar. Na decisão do campeonato, o treinador se mostra justo pela primeira vez, escolhe o centro-avante talentoso em lugar do filho, e logo em seguida, depois de constatar que sua escolha foi um sucesso, faz o sangue rolar com suas próprias mãos. Um palhaço se revolta de repente, ao perceber que o futebol, que tomara o lugar de sua vida, também só lhe trouxe desgraças e desilusões. Durante o périplo da fuga, o treinador ainda desvenda o Brasil e suas mudanças mais recentes, mostrando que o futebol funciona como a metáfora mais perfeita da vida e ajuda a compreender o mundo inclusive em suas manifestações mais complexas e contemporâneas.
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E então eu contei a única coisa que contei mais detalhadamente a ele, o Yannick na minha frente, contei que perdi meu pai há seis meses, e ainda confessei que foi isso que me levou à penitência de fazer a pastoral no presídio, e portanto a encontrá-lo, depois de pensar apenas, e durante anos punindo meu pai, em fazer carreira na Igreja como seminarista, percebendo que a indigência intelectual do catolicismo era alarmante e que eu teria um tapete de facilidades estendido a meus pés, um tapete que me levaria diretamente ao Vaticano pra um mestrado, talvez um doutorado, e quem sabe me fizesse ficar por lá. E lá era bom, sem dúvida. Padre por princípio, nem pensar, só pra punir meu pai.
Mas aí meu pai adoecera, e adoecera da pior maneira possível, câncer nos intestinos, e depois fora sendo assassinado aos poucos, primeiro como homem, perdendo tudo aquilo que era mais seu, e que ele prezava tanto, e prezava certamente mais do que outros mortais, e cultivava, e que até me fizera escolher, ainda que sem vocação e apenas pra puni-lo, sim, puni-lo, digo mais uma vez, a dita vida de seminarista, que era um modo de trilhar outro caminho, frontalmente oposto ao dele, já que eu não poderia vencê-lo, matá-lo simbolicamente no caminho que ele escolhera, o de homem que amava as mulheres. Depois de aniquilá-lo como macho, a doença começou a liquidá-lo como ser humano, e isso numa época de onipotência em que eu mesmo ainda achava estúpidos pedidos natalinos de saúde, afinal de contas essa era uma decisão da própria pessoa pra mim, e ensejos de muitos anos de vida aos aniversariantes. Ora, muitos anos de vida! Também no que dizia respeito a isso a decisão recaía, em minha ainda juvenil opinião, sobre a conduta do sujeito. E então eis que sou agarrado pelo pescoço, lançado ao chão e obrigado a ver através da mais irrefutável apresentação de provas que até mesmo um macrobiótico, alguém que sempre cultivou a saúde pra viver melhor suas aventuras, pode tirar a carta errada no baralho da existência, e isso aos cinqüenta e poucos anos.
E minha vida foi ao hospital, de internação em internação, quimioterapia, radioterapia, e a doença do meu pai sempre mais forte, enquanto ele se agarrava ao menor fiapo que a existência ainda lhe jogava. Não, ele não queria morrer, não queria mesmo, lutou com todas as forças, as suas e as dos outros. Foi da medicina à umbanda, se benzeu centenas de vezes, tentando achar o lugar em que pudesse residir o segredo de sua cura, afinal de contas da missa dessa vida nós não sabíamos nem um terço, e sabe-se lá em que culto poderia estar a almejada salvação.
E o mais terrível, na verdade nem sei se era o mais terrível ou se o terrível era menos terrível por causa disso, era que meu pai morria num momento em que estava amando, amando talvez pela última vez. Sim, porque ele voltara a ser homem quando já não era mais nada, e eu fiquei tão feliz em vê-lo feliz, embora antes jamais tenha conseguido perdoá-lo por deixar minha mãe, minha mãe que depois de ser abandonada morreu, e que eu sempre achei que tivesse morrido de desgosto, por causa dele. Essa mesma mãe, minha mãe, cujos apelos ouvi, que abriu pra mim as portas do seminário e ainda deu um empurrãozinho pra me ver entrando de fato na vida eclesial, me ensinando inclusive a alegar uma poética vontade parricida, que sempre declarei genuinamente minha.
E agora eu me perguntava o que aquela mulher, aquela bela mulher que fizera meu pai se tornar homem de novo, tão madura e tão jovial ao mesmo tempo, tão soberana, achara em meu pai, ela que ficava com ele no pior dos momentos, deixando-o feliz na maior das misérias, mas tanto mais triste por ter de deixar esta vida que apesar de tudo parecia querer continuar sendo tão boa pra ele. O que era melhor? A só tristeza que amenizaria a passagem, ou a felicidade que alegrava o momento derradeiro e tornava o outro lado assim tão mais desgraçado?
Na situação extrema do meu pai estava registrado pra mim tudo aquilo que sempre considerei a grande injustiça da morte. Por mais que eu sofresse, aprendesse a sofrer com a perda paulatina do meu pai, eu sabia que algum dia sofreria menos, que conseguiria me ajeitar de algum modo, com a situação, ainda que isso não aliviasse de jeito nenhum a minha dor momentânea. Mas a morte era injusta sobretudo pra quem morria, pra quem não poderia mais viver aquilo que estava vivendo, fosse o que fosse, pra quem seria podado no meio do caminho, fosse qual fosse, e ponto final. Um homem acordava pela manhã, projetava o que fazer até a noite, e era levado assim no mais ao meio-dia. Sim, um dia haveria um dia planejado que não chegaria ao fim. Um absurdo as coisas terminarem assim pra ele.
Depois de quase um ano de sofrimento, na última internação, por causa de mais uma obstrução intestinal que precisaria ser removida cirurgicamente, ele, que já nem carregava mais as tripas, eu disse as tripas pensando intestinos, as tripas dentro do próprio corpo, e era lançado ao hospital por um simples gomo de tangerina, enfraquecido, oito centímetros e trinta e seis quilos a menos do que tivera no auge, dissera à equipe cirúrgica, vamos pra mais uma, mas se vocês perceberem que não está dando muito certo, que não sairei desta pra melhor, não precisam fazer muito esforço, podem me deixar ir, quero descansar, aqui ou lá, enquanto eu me arrebentava num canto, envolvido pela dor, sem saber o que fazer, amparado por aquela sua derradeira mulher, que ele ainda cativara, já moribundo, quando tudo lhe doía e até suas roupas o maltratavam. Se o seu fascínio pela vida parecia entregar os pontos pela primeira vez, eu hoje sabia que na verdade ele já sabia, sabia de tudo, e que sabia porque sentia e ouvia, e porque o ouvido acordava a sabedoria, e no fundo queria apenas consolar os médicos com o que dizia.
Como era duro ver todos aqueles aparelhos, aqueles números cheios de dígitos, que eu acompanhava com todo o medo do mundo, tremendo a cada vez que um deles variava bruscamente, quase sufocando quando algum chegava aos vinte, o que significava aquilo, as batidas do coração, meu deus, não pode ser. Agonia, terrível agonia, todas aquelas cifras que eu não podia regular, e ainda por cima o estertor constante do meu pai, aquele ronco das profundezas que nem pareciam mais existenciais. Por que era impossível segurar a vida pelo fiapo que ainda restava? Congelá-la do jeito que estava, pelo menos? Por que não dava pra simplesmente digitar, estabelecendo que o padrão para o valor daquele aparelho era cento e dez, para o outro sessenta e oito e determinar que o corpo os respeitasse? Quando um deles se aproximava do zero eu corria pra porta, quando um certo apito começava a soar mais alto eu morria junto com meu pai.
Mas então ele melhorou depois da cirurgia, todos num otimismo e tanto, aquela mulher feliz com ele, tantos planos que ela estava fazendo, enquanto ele só sorria, certamente feliz por poder se despedir com mais compostura, agora eu tinha certeza. Eu alimentei todas as esperanças, pensei que nem precisava falar o que queria, o que precisava falar, porque não era a melhor hora, porque ainda haveria tempo, muito tempo pra isso, porque o tempo voltava a ser eterno pra mim como para o soldado que mesmo na guerra jamais imagina que a bala que o matará já está sendo disparada, e também porque um pai que de fato merece todos os nossos sacrifícios, jamais os pedia. Ele era assim, e eu estava decidido a mostrar que quando era por causa de um pai assim, de um pai assim como ele, que alguém se cansava, não se podia nem falar em fadiga. Queria descobrir que o amava, e que isso não era nem de longe contra a sua vontade, muito menos contra a minha, e foi com a maior ternura do mundo que atendi seu pedido meio estranho pra me deitar ao seu lado naquela cama de hospital em que ele me abraçou de verdade pela primeira vez depois de tanto tempo. Só bem mais tarde vi que naquele sorriso sempre desenhado assim tão placidamente em sua boca estava escrito mais uma vez que o homem que se ia foi aquele que mais me amou.
E quando saí do hospital, já bem mais tranqüilo, pra cumprir certas obrigações dois dias após a cirurgia, afinal de contas, que bom, a vida continuava, logo fui chamado com urgência, meu pai estava mal, bastante mal, eu precisava vir imediatamente. Cheguei correndo, quis pular por cima de todos os crachás e formalidades da entrada, mas me contive, e ao entrar no quarto, que terra era essa em que eu chegava? Vi a cama desfeita, ninguém em cima, e na frente dela uma cadeira vazia, a cadeira que eu não devia ter deixado, a cadeira em que não estava mais aquela mulher. Tive de me encostar à parede pra não desabar, e voltei a erguer os ombros quando uma enfermeira me disse que o levaram pra uti.
Não, ele ainda não se fora, ele não morreria, ele voltaria pra casa comigo, eu lhe daria minhas pernas, meus braços, meus olhos pra ele viver, se fosse o caso, ele ainda poderia viver com aquela mulher um derradeiro, imenso e longo amor, o maior amor, porque seria não apenas o último, mas o amor de um homem que esteve prestes a perder tudo, e que agora saberia de fato o que valia a pena nesta vida. Fiquei sentado na sala de espera, esperando a pior das esperas, a espera daquilo que talvez não viesse mais, e não viesse mais do modo mais cabal, dizendo seu pra sempre mais definitivo.
E as notícias, quando vieram, não foram boas. A batalha era decisiva, ele ainda por cima estava com pneumonia, um exame constatara, não era possível fazer previsões. A noite veio, a meia-noite veio e então aquela mulher e a enfermeira de plantão me mostraram que seria melhor dormir, que não convinha ficar ali. Por quê? Não havia nada a fazer, era melhor deixar que a noite decidisse, e fomos os dois pra casa, eu pra minha, aquela mulher pra dela. Em caso de necessidade, ligariam do hospital.
E ligaram.
O telefone tocou às cinco da manhã enquanto eu nem dormia, sacudido por todos os pesadelos, e, quando ouvi o tilintar, eu já sabia de tudo, e atender foi confirmar uma formalidade, a mais dolorosa das formalidades. Solucei, liguei para aquela mulher, e me vesti, e fui, e cheguei, e disseram que os laudos estavam sendo preparados, que eu devia esperar, que seria chamado pra fazer o reconhecimento do corpo, que enquanto isso poderia ir acertando a burocracia do enterro, eles sabiam que ele havia pedido enterro e poderiam me indicar o caminho, tinham todos os contatos. E disseram de novo que me chamariam quando fosse necessário reconhecer o corpo, que não, que eu não poderia vê-lo agora, se eu precisava de uma psicóloga, o hospital tinha, eu logo dizendo que não, que preferia acertar as coisas. Como ele ia assim para as trevas, deixando toda aquela noite pra trás, mostrando que aquilo que eu sempre achara amargo na verdade era doce, e que até o maior encanto agora se transformava em desgraça? Não vi nem seus olhos se embaçando, não tremi no instante terrível em que a vida dele parou, não sei nem nunca saberei de absolutamente nada.
Quando aquela mulher chegou ela me ajudou, ficou do meu lado, enquanto eu rebentava em soluços que não conseguia soluçar, ao ser lembrado de que talvez fosse conveniente fazer a comunicação da morte no jornal, ao que alguém já me apresentou o telefone do vendedor de anúncios fúnebres, que logo chegou todo sério, camisa fechada até o último botão, rosto enlutado, dizendo com toda a objetividade sofredora do mundo que os preços variavam de dois mil e seiscentos a vinte e três mil e oitocentos, ou algo assim, que meu pai era um homem público, que pertencia à casta cultural e nas entrelinhas à classe economicamente mais favorecida da sociedade carioca, enquanto eu percebia que até na morte muitos queriam se mostrar e outros arrancavam seus gordos percentuais. Minha escolha, como sempre na vida, ficou quase no meio, mas um pouco mais perto da mesquinhez do que do exibicionismo, enquanto aquela mulher sancionava com inclinações sofridas de cabeça minhas decisões que nem eram, pilotos automáticos que sabem o momento certo de assumir a direção, e nessas horas felizmente sempre acabam por pegar o caminho correto.
Depois veio o homem dos caixões, na só magia de um telefone que também me foi posto entre as mãos, e eu percebi que seria obrigado a escolher inclusive o esquife do meu pai, que não seria poupado nem disso, que não convinha aceitar a oferta daquela mulher perguntando se eu não queria que ela tratasse sozinha dessa questão. Foi quando o homem chegou, por que todos os mercadores da morte eram tão parecidos? Ele me passou o prospecto com os modelos, eu pedi licença pra ir ao banheiro, achando que despacharia enfim toda a água do meu corpo pelos olhos, mas eu não conseguia chorar, eu só conseguia não conseguir engolir, não engolir nada, nem meu cuspe, muito menos o soluço trancado na garganta, e fui obrigado a voltar ao homem, àquela mulher que me afagou o ombro de toda a sua alta distância, e escolher. Se eu conseguia falar de tudo isso agora, aliás, era porque já havia passado algum tempo, porque me sentia acolhido por ele, aquele homem na minha frente, por ele, sim, por ele, o meu Yannick, o homem que eu um dia vira tão estranho, porque na hora dos anúncios e dos caixões eu mal pensava no que estava fazendo, e não conseguia dizer nada, sufocado, até porque se alguém consegue dizer a que ponto o mundo lhe dói, é porque o mundo lhe dói bem pouco. Agora, também graças a ele, que me ouvia, que pedira pra me ouvir, o nó na garganta já me permitia abrir a boca.
No âmbito dos caixões, mais uma vez tudo começava mais ou menos em dois e terminava acima dos vinte. Quando o mercador apontou para um modelo de dezessete mil, dizendo que muita gente o escolhia, eu olhei pra mulher e disse que achava que meu pai não gostaria de ser enterrado num caixão chamado Duquesa, que ele certamente preferiria um Varão, sem contar nem mesmo os nove mil da diferença que seriam economizados. Aquela mulher sorriu pra mim com toda a dor de sua perda marcada no rosto.
Só explodi quando tive de fazer o reconhecimento do corpo, várias horas depois, e talvez tenha explodido só por causa da última esperança perdida. Me levaram à câmara fria, onde já esperavam por mim os preparadores do corpo, diante da porta, perguntando como eu queria que cuidassem do meu pai, se eu queria um tratamento simples, ou se queria um mais elaborado, como se eu quisesse alguma coisa, e entraram em detalhes dos mais sórdidos, mencionando valores díspares e dizendo que também havia a opção de fazer tudo por fora, de acertar com eles diretamente, sem a intermediação da funerária, com um bom desconto, ou seja, o melhor serviço pela metade do preço. E o homem que falava, um mulato forte, tinha voz pausada, casaco preto-urubu, mais uma dessas tranqüilidades calculadamente enlutadas, fazendo gestos largos mas vagarosos, pausados, com as mãos fortes, que eu já via carregando e revirando o corpo do meu pai no tratamento proposto, antes mesmo de ver seu corpo. Eu aceitei, acho que aceitei a versão por fora, devo ter pensado em distribuição de renda, achando que aquele mulato hercúleo poderia sustentar melhor seus filhos com a bandalheira proposta, e que um dono de funerária devia ser ainda menos simpático do que ele.
Em seguida adentramos a câmara fria, a câmara mais fria, e o próprio mulato, que já levaria o corpo, levantou um plástico hospitalarmente verde e eu não reconheci meu pai, porque aquele não era meu pai, e eu pensei que ele não tinha morrido, que ainda estava vivo, e logo disse que devia ter havido um engano, que havia um engano, que meu pai não tinha morrido, porque aquele definitivamente não era o meu pai. O mulato, olhando pra mim e depois pro rosto daquela mulher que também mostrava todas as marcas de um susto, enfim volveu seus olhos pro morto e constatou o engano, afinal de contas dava pra ver na pele do corpo sobre a bancada que ele estava bem mais pra pai dele do que pra meu pai, pediu desculpas, dizendo talvez treinadamente que a morte estava em todo lugar, e me levou ao estrado seguinte. E então eu, que realmente já pensava que meu pai talvez ainda estivesse vivo, vi.
Vi e explodi, sentindo e chorando.
Vi meu pai ali, exatamente como ele era antes, só que parecendo uma estátua de Rodin, um Rodin deitado, com uma ancestralidade imensa nas feições, malares salientes, rosto como que inchado, rígido, a estátua de um australopiteco, meu pai entalhado por Rodin, uma imobilidade total, mas igual a sempre, e, meu deus, qual era a diferença entre o que ele era antes e o que ele era agora? E eu rebentei enfim nas todas lágrimas, não entendendo mais nada, não vendo mais nada, nem aquela mulher, não compreendendo por que havia toda aquela diferença, apesar de não haver diferença nenhuma. Por que ele já não era mais, se ainda no dia anterior, quando era igual, ele ainda era? Nada mudara e tudo era diferente.
E eu não poderia lhe dizer mais nada, eu nem poderia me abaixar a seu ouvido com algum consolo como fazia quando estava moribundo, quando em seus estertores parecia inclusive pior do que agora, porque ele não ouviria mais nada, definitivamente não ouviria mais nada, nada do que eu fizesse adiantaria mais alguma coisa, nada mesmo, e eu não poderia nem acertar os ponteiros com ele, pedir as desculpas que não lhe pedi pelo distanciamento de tantos anos, dizer que senti muitas vezes o que ele fazia e o que ele sentia, e que só por birra busquei outros caminhos. Mas, meu pai, eu não queria te ver banido, desterrado. Por que a desgraça foi maior que a minha súplica? Eu queria te presentear ainda com o dia de amanhã, te dar orvalho pra beber, cozinhar arroz com açafrão, pescar um marlim-azul pra ti. Prometo comprar um canário pra te acordar, ao romper da aurora, já que os sabiás não sabem cantar nessa cidade.
E enquanto olhava, banhado em lágrimas, pra aquele homem na minha frente, lembrava do amparo daquela mulher que na hora nem percebi, o amparo que aquele homem, meu Yannick, que percorria o mar de minhas dores comigo, também me dava, a mão sobre minha cabeça, e pela primeira vez em seis meses me dei conta de que talvez não estivesse tão sozinho e ainda me restasse mais do que ficar olhando pra sempre o lugar em que meu pai morreu, e depois foi enterrado.