Apesar das últimas descobertas em todos os campos das ciências (aplicadas, cristãs, econômicas, exatas, experimentais físicas, humanas, infusas, morais, naturais, normativas, ocultas, sociais ou até estesico-angelicais) ainda nenhum problema se resume à solução. Todas as considerações são ponderáveis. Se a menor distância entre dois pontos é uma linha curva, nem por isso Deus escreve mais usando linhas retas. Ou quem ama não mata. Ou todos os homens são mortais.
Por isso, enquanto as vocações sacerdotais tendem a zero, os crimes passionais navegam no infinito. E as mulheres também morrem. A única dúvida está no uso abusivo de vitaminas sintéticas na composição dos filtros ativados e na propaganda tendenciosa do padrão de qualidade das camisinhas importadas e conceitos correlatos. No mais, os resultados estão em perfeita consonância com o que determina a Constituição Federal e a essência das religiões mais conceituadas. Fundamentalistas ou não.
Sei que Shirley me considera um idiota. Mas, mesmo levando em conta a sua formação acadêmica, psicóloga já em fase de estágios terminais, e a sua formação profissional, promotora autônoma de serviços epiteliais em domicílio, os louros da descoberta não lhe podem ser atribuídos. De acordo com o laudo do acidente que me deixou exaurido, Shirley apenas exacerbou os movimentos e transgrediu a primeira lei do profissional pro-pro: o papa é o papa e ninguém deve ser mais papista do que ele.
Mas, como laudos são laudos, e laudos são apenas exercícios de retórica que dependem só do espectro esquizo-egótico-cultural de quem os faz, se não outorguei a Shirley a maternidade do conceito, paguei-lhe, pelo menos, os esforços e os suores do trabalho efetuado. O preço que lhe pago, se bem considerado o tempo gasto na faculdade e nos cursos de extensão, e bem avaliado o alto padrão da qualidade fricativa, é mais que merecido. E, de forma alguma, ultrapassa os parâmetros do mercado, mesmo considerando a superioridade material da oferta sobre a inferioridade espiritual da procura.
Afinal, manter um padrão de vida condizente com as atribuições de futura psicóloga e promotora qualificada de serviços epiteliais em domicílio, mesmo com a inflação sob controle e o poder aquisitivo em escala de ascensão, uma prestação de alto padrão de qualidade tem que ser bem remunerada. Apesar do que apregoa o governo, as aposentadorias dos autônomos ainda estão muito aquém do necessário. Principalmente, daqueles que necessitam de constantes recauchutagens de forma e conteúdo.
Mas há que levar em conta, ainda, outros considerandos. Além das dívidas contraídas para pagar as anuidades (caríssimas) da faculdade, não se pode esquecer o custo (altíssimo) dos cursos de extensão. Embora sem documentos comprobatórios e analisando apenas o que me foi dado constatar, um tão alto padrão de qualidade só poderia ser obtido com muita perseverança e com muita experiência. Só a interpretação (realíssima) dos orgasmos merece um quadro na parede. E com aquela moldura dourada e foco de luz dirigida.
Mas o resultado tem sido altamente compensador. E, o que é importantíssimo, para as duas partes envolvidas. Shirley esconjurou de vez o saldo devedor da sua conta bancária e o meu sistema endocrinológico assegurou um funcionamento mais do que perfeito.
Por isso, a nossa associação tem sido também uma simbiose mais do que perfeita. Shirley, grudada em mim, não precisa mais preocupar-se com flexibilização de preços ou futuras recessões, e eu, grudado nela, também não preciso masturbar-me. E, o que é mais importante ainda, para alcançar este patamar de perfeição não precisamos utilizar nenhuma reengenharia transcendente ou apelar para qualquer das qualidades totais. Usamos, apenas, a boa e velha conveniência interativa.
Às vezes, evidentemente, surgem percalços. Preocupados, apenas, em manter bem amalgamada a moleculagem da nossa simbiose, nem lembramos da primeira lei dos imprevistos: quaisquer que sejam as conjunturas há sempre disjunções. E, uma noite, o primeiro percalço apareceu. Enxurrante e, muito mais do que enxurrante, absolutamente inevitável.
Inevitável [Do lat. inevitabile.] Adj. 2 g. Não evitável; fatal. (Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Novo Dicionário da Língua Portuguesa, 2a. edição revista e aumentada, p. 941, Editora Nova Fronteira S.A., Rio de Janeiro, 1986)
Felizmente, o percalço não foi fatal, embora se transformasse numa verdadeira fatalidade. E não foi fatal porque Shirley, na mais perfeita objetividade e circunstância, logo deu ao boi o nome do matadouro: aqueles dias.
Como já disse (e não é só minha convicção, é convicção de todos, afinal ninguém duvidou do pentacampeonato brasileiro na Copa do Mundo de 2002), apesar das últimas descobertas em todos os campos das ciências, ainda nenhum problema se resume à solução. Por mais perfeita que seja, qualquer conclusão causa sempre novos problemas. O fato de os chineses comerem gafanhotos (cozidos, ou fritos, ou assados, ou grelhados, à carbonara ou até à thermidor), não solucionou a economia nem diminuiu a quantidade de pragas do Egito. Antes pelo contrário, o estudo da força propulsora das pernas traseiras desses acridódeos levou a humanidade à competição olímpica dos saltos em altura. E, com isso, novos problemas surgiram e verdadeiras atrocidades foram cometidas. Seres humanos inocentes, que poderiam morrer de uma simples morte natural, foram vítimas de mortes prematuras e de desvios sem retorno das pulsões libidinosas.
Daí a dúvida. Ante aquele percalço inevitável, que fazer? Continuar ou esperar? Como em todas as situações dualistas o buraco é sempre mais em baixo, para não correr o risco de mergulhar em abismos freudantescos, Shirley desviou-se do fluxo e arrumou um buraco mais em cima. De excelente embocadura e perfeitamente capaz de manter bem amalgamada a moleculagem da nossa simbiose. Apenas, por uma questão de melhorar as condições deslizantes, Shirley, precavida, consultou um perito ortodontista. E foi com a fossa bucativa devidamente aplainada, que Shirley esconjurou uma possível e indesejável solução de continuidade na epitelial prestação dos seus serviços. Mas uso é uso e, com a densidade usual elevada a graus superlativos, a nossa simbiose passou até de simbiose. Ficou tão unitarista que virou unibiose.
Mas, assim como não há merda que nunca deixe de feder, também não há Chanel que fique sempre perfumado. Apesar da recauchutagem ortodôntica ter beirado a perfeição e o resultado fricativo superar todos os meus sonhos, um detalhe nos escapou: é o berço da estatística que balança a publicidade de produtos e serviços.
Estatística [Do galáp. ant. beag, pelo bislamês bikini] S. f. Método de esconder o que todos querem ver e mostrar o que todo mundo já viu. (Periclino Dias Bartolomeu, Novíssimo Dicionário Brasileiro, 3a. edição revista e aumentada, 49a. impressão, p. 1.016, Editora Biguá Ltda, Dores de Nossa Senhora do Bom Parto, 1999)
Que fique bem claro. Não estou chutando o balde, nem me queixando do preço que paguei ao ortodonte. O que eu quero dizer, é que o mestre, se era especializado em fossas bucativas não era pêagádê em garantias. E, certa noite, infelizmente, os novos serviços epiteliais interromperam-se. Na complexidade conjuntural da função introduziu-se, à nossa revelia, um pormenor terrivelmente dissonante. Um nervo se expôs à fricção.
Não sou filósofo. E, muito menos, cientista social. Mas nada melhor do que uma experiência dolorosa para descobrir o encoberto. São os pormenores dissonantes que desestabilizam os equilíbrios, assim como são os substantivos que explodem os silêncios. Mesmo quando adjetivados pela ausência de ruídos.
Um nervo. O que vale um nervo? Nutritivamente, nada. Mas, fisiologicamente, é um pormenor valiosíssimo. Por menor que seja o seu significado significa sempre mais do que parece. E no presente caso significou além da conta. De repente, uma contorsão e um grito, e lá se foi o serviço fricativo. Incapaz de movimentar os epitélios na boa e velha cadência quase, quase, Shirley parou tudo. Menos o grito. E não teve exercício ou massagem que amaciasse aquela dor e abafasse o eco daquele puta que pariu.
Mas (e de novo vale recordar que, apesar das últimas descobertas em todos os campos das ciências, ainda nenhum problema se resume à solução), mesmo com a contorsão e o grito, Shirley não esmoreceu e fez outro desvio inteligente. Impossibilitada nas partes superiores e com as inferiores impedidas pelo percalço inevitável, e não havendo também um buraco mais no meio, Shirley consultou o manual e, em segundos, terminou a função que, minutos antes, tinha começado. E, assim, a nossa unibiose foi além de unibiose. Ficou tão justa que virou id personal.
Já disse que não sou filósofo e, muito menos, cientista social. Mas sou usuário e sei quando o ato vira fato. Foi aqui, justamente, que Shirley me considerou um idiota. As considerações são o que são, assim como as urinas e as vaidades também são. Mas, para além de todas as evidências, é também evidente que cada cabeça é uma cabeça e que o coração não tem cabelo. Sabendo disto e sabendo também que Shirley usa peruca de acordo com a cor do anjo de cada dia, as razões pelas quais ela me considerou um idiota são absolutamente transparentes. Se outro motivo não bastasse, só o laudo do acidente que me deixou exaurido já não me deixaria mentir.
Por isso, quando Shirley me olhou espantada e perguntou, Tem base?, e eu perguntei, O quê?, e ela respondeu, Você ficar assim?, eu não soube responder. Mas, mesmo assim, respondi. E respondi porque, se perguntar não ofende, não responder é duvidar. E eu não tinha dúvidas. São, realmente, os pormenores dissonantes que desestabilizam os equilíbrios, assim como são os substantivos que explodem os silêncios, mesmo quando adjetivados pela ausência de ruídos. Por isso fui categórico: Shirley, se tem base ou não, eu não sei. Mas que gozei pra cacete, isso gozei.