Teatro

Conto de Livia Garcia-Roza
Ilustração: Marco Jacobsen
01/12/2003

A voz é sua, Howard. Não adianta disfarçar. O que você quer? Fala. Esqueci alguma coisa no seu carro? Vai dar mais uma volta nos parafusos da minha cabeça? Rindo, não é? Que graça, maltratar os outros… Vou desligar. Já estou satisfeita. Hein? Claro que fui feliz com você. Agora quero ser infeliz. Escolhi uma nova forma de vida. Vamos ver se assim dá certo. Vou casar com um amigo do meu pai. É, ele mesmo. Sei, sei que ele está se desfazendo, se esfarelando, mas o que é que tem? Velho, feio e manco, isso mesmo, mas não tem importância. Não vai me dar esperanças. Pelo menos, vou ser infeliz para sempre. Já é alguma coisa. E depois, cansei de trepar em motel barato. Espelunca, não é, Howard? Me arrisquei a contrair veneráveis moléstias. Só Deus sabe como eu me lavava quando chegava em casa. Um dia passei álcool. Não, Howard, não vamos começar a brincar. Não quero mais cair numa profunda alegria… Faz mal, sabia? E também não quero mais gargalhar junto com você na cama. Muito esquisito. Parecíamos macacos alegres. Acelerados, trincados, resfolegando, e depois estertorando às gargalhadas. É feia a coisa. Não combina comigo. Sou uma mulher educada, e não uma… Como se chama a mulher do chimpanzé? Carmencita!?… Não estou achando graça, sabia, Howard?… E tem mais uma coisa: cansei da sua família. Da falta de olfato da sua mulher. Dos perigos que passaram por causa disso. Do carro que um dia quase pegou fogo, dela nunca ter sentido seu cheiro de garanhão do agreste; e eu com isso? E também não quero mais saber do seu filho que bate no gato e da sua filha que só come brigadeiro. E o cachorro que vocês tiveram que sacrificar? E o sofrimento das crianças? Enquanto isso a vida passa e a chance da minha própria infelicidade se esvai… Não sou insensível porra nenhuma! Foram três anos acompanhando essa família. Dos diabos! Lembra das promessas que você fez, hein, Howard? Casa na Espanha… Onde estava a sua cabeça? Esqueceu o nosso salário de bosta? Disse tudo isso, sim senhor! E o carro que você ia me dar? E minha mãe que você queria ajudar? E pára de me chamar de bonequinha!… Chega! Não vou mais te encontrar, terminou, nunca mais vou ter uma noite feliz… Natal porra nenhuma! Não estou brincando, hein, Howard!.. Quero a tristeza das tardes mornas e sombrias. Não sei quem disse isso, mas meu espírito caiu pra esse lado. Acabou, Howard! Ficar com você é logro, cilada, engano, arriosca. Vi, sim, no dicionário! Vou desligar. Não, claro que não vou mandar beijo. Tchau!

Pronto: decorei.

Livia Garcia-Roza

Estreou na literatura em 1995 com o romance Quarto de menina, ganhador do Selo Altamente Recomendável da Fundação do Livro Infantil/Juvenil. É autora, entre outros, de Solo feminino e Cine Odeon, ambos finalistas do Prêmio Jabuti e, Milamor, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura. O trecho A varanda de meu pai integra romance a ser lançado pela Companhia das Letras.

Rascunho