Surda e muda, porém sensual.

Conto de Sergio Napp
Ilustração: Cris Guancino
01/05/2005

Praia de Belas, onze e trinta da manhã e eu tropeçando em bancos e pessoas graças às muletas. Você já precisou de muletas? Até poucos dias atrás, nem em pensamento. Daí, o acidente com a moto, a fratura na perna e elas, as famigeradas. Quase me desmancho em cima de uma criança quando BUUUM! A percepção: você passeia, distraído, por dezenas de vitrines e, sem querer, seus olhos se fixam em algo. Talvez não seja o melhor ou o mais atraente, mas com certeza não é um objeto qualquer: seus olhos não desgrudam. Nesse algo, seja o que for, se concentra a razão de existir. Entenderam? Pois assim: bundinhas atrevidas, seios empinados, barriguinhas lindas de morrer passam e você nem aí, mas então: BUUUM! Os olhos batem num morenaço e você descobre: boca de veneno, pele de veludo, braços de serpente prontos a envolver, ginga, malemolência, e tudo vindo em sua direção. Nada à volta e, se não há o shopping, devo estar no paraíso. Descoordenado, sem jeito, pelo menos para alguma coisa servem, impeço sua passagem. Ela parece surpresa, mas logo um sorriso devastador. Faíscas no cérebro, calafrios na espinha, dores nos países baixos e pouco falta para um incidente ético-sexual. E não é que ficamos ali nos olhando sem palavra alguma? Desperto e a primeira coisa que me surge, falo, Por favor, onde fica o banheiro? E ela, nada. Repito uma, duas vezes a mesma bobagem, e só então percebo os sinais com as mãos. E entendo.

Me assusto. O rapaz, à minha frente, lutando com as muletas me impede a passagem. Eu o vira de longe, descoordenado, e não podia imaginar que. Mas de fato acontece. Encaro-o e descubro olhos de precipício, como diria o Eifler. E decido que nada me resta a não ser me perder naquele azul sem fim. A imagem me faz sorrir e ele emudece. Gostaria de sua atenção em minhas mãos de ânsias, meus olhos de esperas, e, no entanto, ficamos um diante do outro. E ao nosso redor o espanto. Ele parece frágil em sua arquitetura e respira como afogando-se estivesse. Devo tocá-lo? Como se voltasse de um outro mundo, desperta, e o que fala me surpreende. Repete, titubeante, uma, duas vezes a mesma bobagem. Finalmente, percebe os meus sinais. E, creio, entende.

Tenho uma moto e gosto de sentir o vento. Por isso prefiro não usar o capacete. Nela me perco do mundo, reflito sobre meu modo de ser, sobre os acontecimentos diários, sobre a vida, enfim. O vento nos cabelos, sabe, entrando pelas mangas, imiscuindo-se pelos vãos, varrendo a pele, isso é liberdade. Independer das estradas, descobrir trilhas e no fim uma cascata em meio à floresta, desviar dos obstáculos, alcançar a montanha, a praia, tudo te dá uma sensação de onipotência. Resultado? Muletas!

Ganha-se no jogo da amarelinha alcançando-se o céu e, para tanto, tem-se uma prenda que é jogada de casa em casa e pula-se com os dois ou com um dos pés, ida e volta, até completarmos todas as casas. Quando descobri que não podia gritar pelo céu ou reclamar de Deus aos berros e sequer ouvir o toque da prenda no chão, morri um pouco. Larguei de tudo e me escondi em mim mesma. Aos poucos percebi a possibilidade de gritar sem voz, de ouvir não ouvindo. A obsessão pelo céu esgotou-se.

Quem consegue imaginar uma transa nessas condições? A dificuldade com a roupa, com os movimentos, os extremos cuidados com a perna recém-engessada. A excitação assume picos de enlouquecer e, antes que o mundo exploda, urge se afogar nas profundezas do vulcão que freme, onde a lava escorre morna e o fogo (meu único desejo) há de me consumir lenta e prazerosamente. Mas súbito, ela me vira e me cavalga. Doidamente feliz, me arrasta em seu entusiasmo. Prensa-me a perna contra a parede. A dor se avoluma, o gesso trinca, eu imploro água, ela entende, Mais!, e acelera; eu grito, e minhas feições, contorcidas, devem fazê-la pensar que atinjo o nirvana. Nas primeiras lágrimas ela está no auge. Gozou quatrocentas vezes e prossegue ainda mais fêmea. Quando termina, a impressão é de que um trem passou por mim. Limpa as lágrimas, o sangue, recoloca as peças no lugar. Pobre homem, gagueja o enfermeiro, enquanto me ajeita na maca. Você nunca vai entender o misterioso inferno do amor, penso antes de naufragar.

É conveniente para ti, argumenta Luís Paulo. Se não fala e nem ouve, e transa com sabedoria, queres mais?

Concordo, mas é que também sou de silêncios. Desses longos de se perder de vista. De buscar no horizonte o caminho da solidão. A palavra escrita me atrai mais que o som. Gosto de senti-la e à sua presença, o contato do mamilo como se perfurando a camisa buscando a pele. Sei que não sei muito, mas ela me acalma a angústia com seu silêncio e sua posse. É um sentimento complicado, mas claro para mim. Gostaria de ouvir uma palavra que fosse, mas entendo que talvez, então, se perdesse o encanto. Quanto à transa, é apenas um detalhe: importante, reconheço, mas um detalhe.

É conveniente para ti, pondera Cíntia, um homem que desaparece entre os livros e não transa todos os dias?

Nada sei da palavra enquanto som e tampouco do som e isso não deixa de ser interessante. Me preocupava muito; mais, me angustiava. Quando surgisse o homem, como poderia dizer-lhe? Seriam o bastante os sinais ou a escrita? Daí o apetite. O tato, o toque, a posse me parece a forma. O contato do mamilo perfurando a camisa em busca da pele é detalhe; importante, reconheço, mas apenas o início. A transa, esta sim, é vital para a troca e a permanência. Se não tocamos o céu, se chega perto.

Você está surfando, solitário, naquela imensidão de mar. Aguarda, com calma, a onda certa. De repente você a sente. Ela vem forte, muito forte. Enorme, poderosa. Pode ser um tubo e se você atravessá-lo, como é o mais secreto de seus desejos, poderá dizer, nem que seja para você mesmo, Brother, quanta felicidade! Mas pode ser que ela quebre em cima de você, destrua a prancha e lhe afogue. Exatamente assim quando me toma. A boca, uma ventosa, me suga por inteiro, húmus, vísceras e sucos, até que só reste o oco do oco, enquanto as mãos, ah, as mãos, lâminas a me extrair a pele em diminutas tiras, devagar e despudoradamente; a me arrancar os pêlos, um a um, numa alegria obscena e verdadeira. O que resta de mim, quando termina, espalhado pela cama, pelo sofá, onde quer que seja? A prancha aos pedaços e eu, envolto pelas águas, lutando por respirar e não morrer. Feliz, muito feliz.

Está de volta o homem. Perdera-se nos labirintos e retorna com sorriso de menino envergonhado pelas travessuras. Um tigre o acompanha e, vez que outra, lambe-lhe as feridas. Eu o aguardo, cântaro à espera de leite e mel. Gosto desse homem. Sei que ele sabe, mas não o quanto. Sequer imagina, pois se assim fosse morreria o amor.

Sérgio Napp

É poeta, escritor e compositor. Autor de Quintais da madrugada e Estranhos sentimentos, entre outros.

Rascunho