O avião primeiro é um ronco, um som longínquo enrolado nas nuvens.
Se a noite houvesse conseguido dormir, seu ronco seria um ronco assim — mas a noite não dorme, o menino não dorme, ninguém aqui dorme até ir o aeroplano vago, o avião-ronco se tornando uma coisa mais sonora e maior, porque sua forma bojuda rompe os cúmulos e vem na nossa direção, cresce um dragão metálico irritado e se prepara para pousar quando já estamos lá fora.
Antes de sairmos, a mulher ou eu, na estação das chuvas, sempre olharemos para a mesa se mariposas, por um motivo qualquer, relacionado com o avião e com a noite, e talvez um tanto por superstição que não precisa de explicações. E aqui devo voltar a mencionar o menino e seus muitos talentos desenvolvidos na escuridão, um menino cego que não pode ver os aviões, mas é o primeiro a escutar a sua aproximação.
O menino pode estar atento ao outro vôo — o dos insetos antes da morte — mas é sempre ele que ouve o ronronar (o ronco antes do ronco), levantando a cabeça como um sinal para nós (porque logo depois se ouvirá claramente o som cortando as nuvens de sombra, pesadas sobre a península).
Uma única vez ele deixou de escutar: eu lhe mostrava uma lebre negra e um lobo faminto, com os dedos das duas mãos contra a luz da lâmpada assassina dos insetos, e o seu ouvido foi para dentro das sombras que não podia ver projetadas na parede. Buscava os sons, quem sabe, que eu não sabia fazer com o meu lábio leporino feio de se ver produzindo os sopros de deformação das palavras sibilantes como “sassânida”, “assassino”, “sussurro”, “silício” e “açafrão”. Seja como for, ficamos ali, com receio de que ele estivesse se retardando demais na sua sombra, não escutando o avião da noite, fazia frio e nossa esperança era que a noite ficasse como um borrão sem nada de avião surgindo da irrealidade do ronco que crescia ao encontro do hangar sem nome, que não figurava nos mapas: nós. “Aqui estamos, menino: esse nada somos você, eu, sua mãe e toda a sucata, todos os pedaços de coisas que estão atrás da casa: hélices quebradas, manches, partes de asas partidas como um coração de piloto abandonado. Fazia frio, eu já disse, e voltamos — porém o menino continuava sentado como se pudesse ver a parede onde as minhas mãos haviam animado o contorno do predador e da vítima que não escapa, o animalzinho sem socorro (que a mão desfaz na boca do lobo).
Como escapar? Como fugir do fogo antiaéreo que derruba os caças e as altas esperanças dos jovens pilotos? O que há de estranho sobre a juventude eterna dos homens que pousam, o capacete de couro como uma couraça dos dançarinos do touro corcoveando entre as nuvens? Tive vontade de perguntar ao menino silencioso, mas a falta do avião, a parede sem manchas, tudo que era branco e silencioso também me calou naquele instante e deixamos que o menino saísse lentamente do seu sonho imóvel para a imobilidade do sono.
Nem sempre é o mesmo avião. Mas o ronco é sempre o mesmo (o ronronar só o menino escuta). E há sempre as mariposas mortas sobre a mesa, quando nos levantamos para fazer os sinais com a lanterna (menos o menino, que “vê” tudo pela janela.). Ele poderia se ferir com as hélices, topar numa pedra, ver mais do que nós, na nossa noite de sombras se esquivando.
Lá fora, o vento enfuna o vestido da mulher, às vezes mostra as suas meias grossas — porque a luz é voltada para a terra, formando círculos ao redor das pernas. Seríamos alvos fáceis, se o avião fosse hostil, e não o aliado que acaba de atravessar as linhas de fogo inimigo.
Uma vez eu fiquei doente e a mulher, durante uma semana, fez tudo sozinha — ou quase sozinha, porque o menino veio para fora nas noites dessa semana e esteve tão perto do avião, todas as vezes, que passou semanas imerso naqueles seus sonhos da parede, tardes inteiras, de novo próximo do metal suado das alturas, do combustível que forma um capote de cheiro grosso e forte em torno daquela coisa que atravessa a noite e que a noite também atravessa, como uma sombra entra pela mancha da outra, nas minhas manipulações nunca mais feitas contra a parede branca, o lobo faminto não mais devorando a lebre trêmula que não pode escapar do fatal encanto…
Um avião de perto é tão diferente de um avião voando, roncando, sumido no frio das nuvens rosadas por um sol carinhoso. O menino não consegue entender, parece, que o sol quente possa ser terno na sua luz ingênua, de alegria pelas coisas. Nunca vi o sol contente nos olhos opacos do menino que, no entanto, refletem a grandeza gelada das naves e a morte das mariposas contra a lâmpada. Há relação? A fuselagem riscada, as pequenas luzes vermelhas, a graxa em excesso, o combustível, que um aeroplano bebe de pleno direito, o vôo cego com os instrumentos de navegação abandonados a si mesmos.
O menino disse — depois de eu muito perguntar, como um professor de aldeia exigindo definições — que os aviões eram tristes. Os aviões, segundo ele, não eram tristes como os insetos indecisos, ainda à volta da luz, decidindo se querem ou não morrer contra o céu falso do bojo ocultando os filamentos da luz elétrica acesa como um mortal engano para eles. Triste, realmente triste, segundo ele, era um único inseto morto em que se podia tocar com o dedo, empurrando o pequeno corpo inerte da mesa limpa para o chão sujo de farelos e folhas secas, lixo das asas queimadas e uma ou outra pena de ave abatida pelas hélices (riscos de sangue na fuselagem davam sinal dos choques freqüentes).
“Nem o piloto está mais dentro” — foi o que ele quis dizer, riscando na areia da praia, com seus olhos feridos, um avião vazio que não tinha, quase, a forma dos aviões descidos do céu, porque tudo pode se tornar desmedido nos desenhos riscados por um cego. Não o ajudei, naquele dia. Dei-lhe o melhor graveto, no máximo, e com ele o menino sulcou na areia fina, ficou ouvindo o mar para imaginar a fortaleza voadora que ainda ficou visível debaixo da língua espumosa da água indo e vindo sobre o avião triste da sua cabeça de menino morto (aquela cabeça grande, que não espera pelo corpo crescer) de medo dos gafanhotos vivos quando eu os ponho na mão dele, dizendo que são os aviões verdes da natureza, que ele poderia esmagar com os dedos, se quisesse.
Há muitos gafanhotos neste extremo da península (o que é estranho, considerando-se o vento e a ausência de plantações atrativas). Não chegam a ser uma praga, nada como no Egito, porém não são agradáveis de se ver nos seus bandos metálicos e aguerridos, enquanto um inseto sozinho, na sua paz de patas inamovíveis, fincadas como um hidroavião em terra firme… isso eu tento que o menino compreenda com a mão, mas ele solta o ser tranqüilo, não dá tempo que se forme a impressão no oco da palma sensível. Também não tive muito sucesso com uma borboleta na parede — exatamente onde estivera um quadro de formato redondo, talvez um retrato solitário na casa que nunca mais foi caiada sobre aquele carimbo de poeira e proteção da luz… o que não me incomoda em nada, nem à sua mãe, nem creio que deva incomodar aos pilotos que descem como se não existíssemos, nós e o Ícaro do único livro aqui existente (um livro de mitologia antiga, com a bela imagem de Ícaro caindo, derrotado, a sua sombra sobre a massa de água que o espera).
E o que esperamos, todos? A sombra dos aviões “tristes”, chegando e partindo, como sombras? As sombras, sempre apressadas, dos pilotos atrás das máscaras que não nos olham como pessoas reais, já disse, os aviadores com os polegares levantados, os acenos de rotina, feitos com a elegância de aeronautas acostumados às despedidas?
Eu já disse que eles, os modernos argonautas sobre mares de chumbo, não se incomodam conosco? Com estarmos, ou não, cansados, ao menos a mulher ser frágil, o menino deficiente (além de triste como os aviões cujo ronco ele adivinha entre as quatro paredes apagadas da sua noite de menino cego)?
Se o menino tivesse a visão e os pilotos fossem menos apressados, eu lhes pediria para trazerem algum almanaque em braile, alguma obra de generalidades menos difícil do que o livro comum de mitologia que já li de cabo a rabo, muitas vezes sem entender as confusões dos deuses antigos, promíscuos e mais ou menos indecentes. Não seria bom para ler, em voz alta, para um menino dado a imaginações na sua solidão povoada de roncos de aviões e nossos silêncios não de marido e de mulher — silêncio a dois —, mas de medo dos pensamentos e das ações que a mesma solidão inspire a adultos com muitas horas desocupadas para a acídia, a preguiça do desespero. Assim, um almanaque de qualquer tipo — mesmo que não produzido para meninos cegos — poderia encher horas duplas, minhas e do menino a ser ensinado sobre outros mundos e outros insetos, outros mares e outros vulcões marinhos e terrestres, evitados pelas aves que migram das geleiras para as zonas quentes, dos invernos para as praias aprazíveis, as cidades brancas diante de um mar de turquesa onde se pesca com vara, redes e as mãos nuas nos remansos da água de grutas azuis, cheias de ecos. Tudo maravilhas descritas em obras geográficas de grande encanto e interesse, com gravuras remotas e fotografias nítidas como a do vulcão Stromboli visto por trás de um terraço de flores cinzentas: “Le volcan de Stromboli fait partie de cet archipel auquel on donne le nom d’iles Lipari et aussi d’iles Éoliennes ou Vulcaniennes. C’est un groupe de petites iles, situées dans la portion de la Méditerranée que les anciens appelaient mer Tyrrhénienne, comprise entre la côte occidentale de l’Italie, la Sicile, la Corse e la Sardaigne”…
Eu pensava nisso tudo (o vulcão Stromboli fez parte da minha infância, mesmo que pelo meio indireto de solenes descrições lidas na solidão do quarto do castigo), quando percebi que o menino chorava. Pensava em como seria agradável tomar-lhe lições sobre esses e outros vulcões do mundo, adormecidos ou ativos, quando suas lágrimas me surpreenderam, no fim da tarde — talvez porque estivesse cansado da solidão do lugar e da falta de lições verdadeiras, numa escola de janelas longe do mar, dos aviões e de um quase desconhecido, com meu lábio leporino estropiando o belo som da palavra Stromboli, cheia de sal e cinza.
Só mais tarde — e pela boca silenciosa da sua mãe — é que fiquei sabendo que ele chorava porque ela lhe havia dito, no promontório onde sentamos sobre as pedras, que todos os pilotos estavam mortos havia muito tempo, voando nos aviões fantasmas que faziam aquele ronco sobre as nossas cabeças, mas, na verdade, pousavam sem o auxílio das lâmpadas que hoje já não levamos para fora da casa onde, afinal, deveremos viver sozinhos para sempre.