Sorvete de jiló e de pimenta

Meninotas e piazotes, a vida é feita de mudanças
01/10/2001

Meninotas e piazotes, a vida é feita de mudanças. Não importa o quanto nos apeguemos às coisas, é importante saber que tudo é transitório.

Transitório é algo que é como o trânsito: uma hora os carros estão todos ali, parados, engarrafados. Parece que nunca mais vão sair do lugar. Depois a gente olha, não estão mais.

O trânsito voltou a fluir. Assim são as coisas, assim são as pessoas, sempre em movimento.

Uma hora aquele brinquedo que a gente gosta tanto está ali com a gente, na outra não está mais. Talvez porque tenha sido levado embora, talvez perdido, talvez a gente nem goste mais dele e tenha jogado fora.

Aquela pessoa que a gente ama também às vezes vai embora. Às vezes a pessoa, às vezes o amor que a gente sentia.

E não adianta querer parar as mudanças. Quem tenta parar o transitório acaba atropelado. O melhor é aprender a viver com isso.

Foi o que Tomazino, o sorveteiro que trabalhava na vizinhança no tempo em que eu era criança, me ensinou.

Nós dois olhávamos um menino que exibia seu sorvete para os outros que não tinham dinheiro para comprar. Ele ficava tanto naquela lenga-lenga de “eu tenho, você não tem” que esquecia de aproveitar a guloseima. Aos poucos o sorvete desaparecia na casquinha, escorria por suas mãos, que ficavam grudentas de açúcar. Foi aí que Tomazino me disse:

— Todos os sorvetes são gostosos, talvez com as exceções dos sorvetes de jiló e de pimenta. Mas não importa o quanto ele seja saboroso, depois de um tempo, ele derrete. Se você não for rápido para aproveitar todo o sabor, você perde a melhor parte.

Fiquei pensando naquilo durante algum tempo. Quando a gente é criança não gosta muito de metáforas ou parábolas. Se você não sabe o que é metáfora eu explico. É quando por exemplo eu falo que José é um leão. José não tem juba nem sai rugindo por aí. É que ele é valente, tem a valentia do leão. E parábola é uma história contada com metáforas. Leão é a metáfora da valentia, no caso de José. Que não têm nada a ver com a história, nem José nem o leão. Estávamos falando de sorvete.

Então eu entendi. O sorvete são os momentos de felicidade e, quando ele derrete, significa que esses momentos passaram sem a gente aproveitar, sem saborear a guloseima. Não entendi até hoje, no entanto, o que ele quis dizer com jiló e alface.

A idéia é a seguinte: não espere para ser feliz amanhã. Nem fique lembrando e descobrindo o tempo todo o quanto foi feliz ontem. Sempre lembre de aproveitar as coisas na hora em que elas acontecem. Porque, daqui a pouco, elas não acontecem mais.

Certa vez, meu avô me aconselhou que eu aproveitasse minha infância, porque eu só ia ter uma. Isso me deixou meio perturbado. Deu a impressão que o resto da vida ia ser meio sofrido e que essa história de trabalho e de ser adulto era uma chateação.

Mas sabe como é… essa história de ser criança e ser adulto não tem um limite muito claro. Quer dizer, não é como se você estivessa andando, tropeça e, quando levanta vira adulto. Essas coisas acontecem devagar e a gente nem percebe. Então, eu fui levando aquele ensinamento de aproveitar as coisas que aconteciam para o resto da vida, como se tudo fosse infância.

Em outros povos, em outras culturas, a passagem para a vida adulta é mais clara. Tem uns índios americanos que, quando os garotos chegam a uma idade, tem que correr quarenta quilômetros com um gole de água na boca. E não pode engolir. Se eles chegarem de volta a tribo e cuspirem aquele gole de água, pronto, agora são adultos. Outros precisam subir uma montanha e trazer uma pedra lá de cima…

Para nós, a coisa, não parece, mas é mais difícil, porque os desafios estão misturados no dia-a-dia… tem a escola, o vestibular, o primeiro namoro… acho que é mais a maneira como nós enfrentamos esses problemas que vão dizer se viramos adultos ou não… e, sabe, até mesmo os problemas e as dificuldades devem ser saboreados… acho que foi isso o que Tomazino quis dizer com sorvete de jiló e sorvete de pimenta.

Alessandro Martins

É jornalista e blogueiro. Edita vários blogs de cultura. Um deles é o Livro e Afins: http://livroseafins.com.

Rascunho