Poemas de Sônia Barros

Leia três poemas sem título da autora de "Tempo de dentro"
Sônia Barros, autora de “Tempo de dentro”
01/07/2021

Na aspereza da areia,
sob o peso escuro das águas
— sólido teto a barrar as setas do sol —
o peixe de voo rasteiro tateia
quase às cegas, embora veja
com alguma clareza por dentro
de si mesmo; segue na obsessiva procura
de um lugar genuíno e não
esse abismo invisível
feito de grãos movediços
prestes a engolir,
das asas exaustas, o pouco
que ainda resta de viço.

Quando os dias e noites — todos os dias e todas
as noites — encharcam-se de mortes,
o luto é quase um estado de transe,
letargia que nos faz prosseguir
sem sair de lugar algum,
meio mortos com os que se foram,
meio vivos com os que, por ora, ficaram.

E não há pintor ou poeta que nos salve:
neste hospício coletivo não há Vincent
que faça entrar pela janela
uma estrela — muito menos uma noite inteira estrelada,
não há Wislawa para cobrir de relva
as causas e efeitos
desta guerra.

Trazer à tona
o pássaro que pulsa no estômago:
trazê-lo à boca
para sentir seu corpo,
lamber-lhe as penas e o bico
com o cuidado áspero
da língua.

Antes que venha o vômito
e reste apenas nódoa na página,
abrir os lábios e dar passagem
ao assobio insólito
de asas livres.

Sônia Barros

Vive desde a infância em Santa Bárbara d’Oeste (SP). Publicou os livros de poemas Mezzo voo (2007), Fios (Prêmio Paraná de Literatura 2014 e semifinalista do Prêmio Oceanos 2015) e Tempo de dentro (Prêmio Paraná de Literatura 2017). É autora de Literatura Infantil e Juvenil, com 20 livros publicados.

Rascunho