Na aspereza da areia,
sob o peso escuro das águas
— sólido teto a barrar as setas do sol —
o peixe de voo rasteiro tateia
quase às cegas, embora veja
com alguma clareza por dentro
de si mesmo; segue na obsessiva procura
de um lugar genuíno e não
esse abismo invisível
feito de grãos movediços
prestes a engolir,
das asas exaustas, o pouco
que ainda resta de viço.
…
Quando os dias e noites — todos os dias e todas
as noites — encharcam-se de mortes,
o luto é quase um estado de transe,
letargia que nos faz prosseguir
sem sair de lugar algum,
meio mortos com os que se foram,
meio vivos com os que, por ora, ficaram.
E não há pintor ou poeta que nos salve:
neste hospício coletivo não há Vincent
que faça entrar pela janela
uma estrela — muito menos uma noite inteira estrelada,
não há Wislawa para cobrir de relva
as causas e efeitos
desta guerra.
…
Trazer à tona
o pássaro que pulsa no estômago:
trazê-lo à boca
para sentir seu corpo,
lamber-lhe as penas e o bico
com o cuidado áspero
da língua.
Antes que venha o vômito
e reste apenas nódoa na página,
abrir os lábios e dar passagem
ao assobio insólito
de asas livres.