Sonata profunda

Nas mãos, entre dedos tortos, a Sra. Gouveia apertava um chumaço de plumas; pareciam penas artificiais, de celofane, pois traziam as superfícies puídas e estavam quebradas nas bordas
01/02/2002

Nas mãos, entre dedos tortos, a Sra. Gouveia apertava um chumaço de plumas; pareciam penas artificiais, de celofane, pois traziam as superfícies puídas e estavam quebradas nas bordas. Mas eram verdadeiras e a mulher as usava para espantar os mosquitos que, nos fins de tarde, tomavam conta da chácara. Apertava-o com energia, demonstrando raiva ou, em vez disso, um medo intenso, e era difícil para o médico se decidir por um dos dois sentimentos. Sem se preocupar em escolher, já que afetos costumam vir enfeixados uns aos outros, o Dr. Seraphico continuou seu caminho; até que, simulando interesse por alguma coisa escondida no declive do terreno, deteve-se a poucos passos do galinheiro. Logo começaria a anoitecer, o que nas contas da Sra. Gouveia só aconteceria depois da chegada de Anderson, mas, para Seraphico, se daria a qualquer momento.

O jardineiro passou diante dos dois, arrastando uma longa mangueira amarela, como se delimitasse um terreno proibido. Era uma boa hora para regar as plantas, o sol já em declínio, a temperatura mais dócil, mas o Dr. Seraphico observou que a terra já estava muito úmida, talvez em excesso, e que o esforço do jardineiro se tornava, assim, desnecessário, ou mesmo imprudente. A mangueira, de fato, tinha uma forma contorcida (assemelhava-se aos dedos quebradiços da Sra. Gouveia), de modo que, a cada dois ou três passos, o jardineiro se via obrigado a retroceder para alisá-la, com a postura dócil de quem acaricia um cão. A Sra. Gouveia notou quando algumas galinhas deixaram seus poleiros para, em fila olímpica, se dirigirem às imediações da cerca; justamente na parte em que, numa placa rústica, era possível ler: “À venda. Urgente. Tratar aqui”.

Um casal viera pela manhã, num automóvel antigo, rangendo e com uma buzina que emitia um ganido defeituoso, o que levou a Sra. Gouveia a não dar muita atenção à proposta, realmente muito baixa, que eles fizeram. Prometeram voltar, mas ela sabia que não voltariam. Eram os primeiros interessados a aparecer em algumas semanas, o que era um bom sinal, já que a chácara, além de pequena, estava mal cuidada e ficava no pé de uma estrada cheia de fendas. O céu estava limpo, a Sra. Gouveia notou, esquecendo um pouco do Dr. Seraphico; mas isso nada significava, já que o tempo naquela região era, ainda mais em janeiro, muito inconstante. Pensou nisso e, em seguida, se deu conta de que estava só a alguns passos do lugar em que o raio atingira Agenor. A lembrança, contudo, não a deteve.

Viu que o médico não sabia como se comportar, e por isso se distraía olhando para o vazio; envergonhada do próprio silêncio, decidiu se aproximar e dizer alguma coisa. Seria difícil vender a chácara, já haviam lhe explicado. Talvez se fizesse pequenas reformas, ou se o jardineiro viesse duas ou três vezes por semana, em vez de uma única vez ao mês, o cenário chegasse a ter um aspecto mais estimulante, capaz de atrair compradores. Essa era uma observação que vendedores estão acostumados a fazer, e são mesmo obrigados a fazer em casos difíceis como aquele; mas, ainda assim, a Sra. Gouveia se sentia desestimulada e, por isso, continuava um tanto distante de Seraphico, sem coragem de expor seus argumentos de proprietária. Ela imaginava que qualquer comentário que fizesse a fazer, no fim, se voltaria contra si.

Ainda se esforçava para esquecer de Agenor, caído entre as flores, com as mãos espalmadas para o céu, dedos brancos e longos, unhas impecáveis, quando deu com a perna vermelha que, como se fosse apenas um resto de madeira, ou um galho seco, surgia entre as hortênsias. Não podia mesmo confiar nos rapazes da vizinhança; pedira que eles o enterrassem alguns palmos abaixo do solo, ou, se isso fosse de todo impossível, que o queimassem; mas a segunda opção lhe parecia muito violenta e por isso preferia que ele fosse simplesmente sepultado, bem fundo, como se houvesse o risco de que viesse a entrar em decomposição. Virou-se imediatamente em outra direção, mas Seraphico não pôde deixar de notar que alguma coisa a chocara e, numa rápida inspeção de especialista (ele que era considerado um clínico hábil para os diagnósticos difíceis), logo topou com a perna vermelha que, numa posição escandalosa, se erguia entre as flores.

A Sra. Gouveia usava um vestido de musselina, muito antigo e desbotado; e trazia os cabelos cobertos com um lenço espanhol, que o próprio Dr. Seraphico lhe trouxera de Valência, onde estivera para um congresso. Vestia-se como uma mulher ferida, como se o raio também a tivesse atingido (e isso, num sentido vasto, aconteceu); e por isso julgava que, mesmo que o médico não viesse a comprar a propriedade, sua visita lhe traria algum benefício. Quando soube que ele vinha, chegou a pensar em tomar um banho de algas e depois vestir um conjunto escuro, e ainda decorar o peito com um medalhão da Virgem; mas um sentimento de exaustão lhe disse que o melhor era continuar assim, com o mesmo traje que, uma ou duas horas antes, na cozinha, amassava uma broa de centeio.

Seraphico examinou a perna, inseguro em relação ao objeto que tinha diante de si; ainda se agachou, apalpou-a cheio de escrúpulos, depois ousou dar uma ou duas batidas rápidas na madeira vermelha para, só então, dizer: — Parece um móvel. É uma mesa? — A Sra Gouveia se limitou a dar de ombros, o queixo erguido na direção do horizonte, os olhos apertados como que expostos ao fogo. Nada respondeu. O Dr. Seraphico se pôs a olhar os restos de sol que declinavam no horizonte; amparou-se nessa visão, deixou que ela ocupasse o lugar do silêncio da mulher, e se sentiu um pouco melhor. No mesmo instante, Anderson apontou na estrada, montado em seu belga. Vinha em galopes lentos, bailando sobre a poeira e, quando se aproximou, não podia esconder a felicidade. Abraçou a Sra. Gouveia e depois, como ela não o apresentara, disse: — Chamo-me Anderson. Sou o irmão de Agenor.

Não disse que era “filho” de Gouveia, nem a chamou de “mãe”, o que deixou o médico desconfiado. Talvez não tivesse entendido corretamente, mas isso já não importava. — E como esta mesa veio parar aqui? — perguntou. A Sra. Gouveia agachou-se, pegou uma garnisé no colo e pôs-se a mimá-la; foi se afastando aos poucos, como se o vento a empurrasse. Só quando já ia longe, Anderson disse: — Não é uma mesa, embora possa parecer. — Arregaçou as mangas e foi até os fundos do galinheiro em busca de uma pá e, quando voltou, passou a atirar porções grossas de terra sobre aquela última perna de madeira, que logo foi engolida pelo solo.

Naquele momento, exatamente nele, o Dr. Seraphico resolveu que não compraria o terreno. Teve dificuldades para explicar sua decisão à proprietária, e usou argumentos grosseiros, como o de que contraíra uma dívida na compra equipamentos médicos, estrangeiros, que ainda demoraria a pagar, o que era mentira. A Sra. Gouveia, no fundo, pareceu satisfeita. Despediram-se sem emoção. Assim que fechou a porta do carro e ligou o motor, o Dr. Seraphico ouviu, dentro de si, uns sons melancólicos. Julgou que viessem do estômago, pois estava apenas com o café da manhã. Desceu a estrada assobiando uma canção que desconhecia, o que o deixou inquieto, e à noite, antes de se deitar, e sem saber por quê, disse à mulher que, se não fosse médico, teria sido compositor. Só então, pensando em voz alta, exclamou: — Mas é claro, era um piano! — Em algum lugar do escritório, ainda guardava um convite, que recebera semanas atrás, anunciando um concerto de música erudita, no qual Agenor Gouveia teria sido o solista.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho