Sombras

Conto de Ronaldo Cagiano
Ronaldo Cagiano, autor de “Cartografia do abismo”
01/09/2008

Agora eu sei que aquilo se chamava partida: as silhuetas que eu via nas águas do rio Pomba quando cruzei a ponte velha levando meu irmão à última morada.

Era uma caminhada sem sentido, o rosto grave das pessoas, o silêncio dizendo tudo, a solenidade nos gestos e olhares, e a gente, saturados de inconformidade, realizando um trajeto que nunca escolheu.

Eu não me esqueço de como badalava em mim o poema de João Cabral: “este rio/ está na memória/ como um cão vivo/ dentro de uma sala”. Uma sentença que me lembraria para sempre o dia mais longo de nossas vidas, que se confundiam com a que ali seguia, inerme, diante da inexorabilidade da indesejada das gentes. As Parcas, mais uma vez, deram as cartas e de forma alguma eu conseguia entender de que barro somos feitos.

Quanto de mim seguia junto com aquele féretro.

A sensação de desconforto íntimo começou quando o caçula foi me buscar ao sopé do Morro do João Peixe e eu tive que interromper o jogo da amarelinha e descer correndo os paralelepípedos da Granjaria, em meio à fita de cetim da sapatilha que, desamarrada, bailarinava ao vento, num balé confuso, tão perdida como eu no burburinho de pensamentos sinistros e difusos que me acompanhariam até em casa, onde cheguei sem saber ao certo por que mãe me chamava naquela hora.

E tudo se acentuou e ficou mais claro, quando a alguns metros da varanda eu a vi de costas encoberta pelo caótico desespero de uma fala entrecortada de gritos, inútil tentativa de entender por que alguém saiu para não mais voltar.

O luto expresso em cada rosto, dos meus e dos que traziam a parcela mínima, mas inesquecível, do adeus, fazia a coorte daquele momento em que um destino foi cortado ao meio, mas a faca incisiva habitava a nossa carne e antecipada um crepúsculo sem fim.

O leito lá embaixo, nossa atenção imersa nas linhas tênues dos corpos cravados na serpente líquida, que seguia seu destino imune à falta de sentido na vida e no seu fim, reflexos da transitoriedade de tudo. Passava apressado esse rio outro, como o ser que era conduzido, tão cedo fatigado de uma existência e seus anseios de fabulosa extensão.

E com constrangimento e dor, os que ficaram não entendiam ainda o sorriso interrompido, a felicidade interditada por um acidente. A ilha dentro de nós bloqueando os sonhos, a colher travada na boca, um filho que nunca soube além de um horizonte partido, porque engatinhava no absoluto da existência, buscando no entretempo de suas convicções todos os tempos de uma vida. “Uma vida que poderia ter sido e não foi”, como me confidenciou o poeta sobre as lições dos aeroportos, das estações de trem, dos terminas que decretam despedidas, a lógica de não ser visto, de ser o silêncio, o nada e a invisibilidade após a curva, tão compulsórios e injustos, porque maior equívoco não há que drenar um sonho mancebo na pista criminosa de uma via desconhecida, onde somos clandestinos num destino qualquer.

Ali eu morri todas as mortes, e tantas vezes multiplicada a certeza de sua intangibilidade naquele séqüito entre a capela e a necrópole. Mas os espectros que se escalonavam na água informavam de um entardecer maior em nossas histórias, véspera de uma noite que não saberíamos medir, mas que abrigaria suas traições antes mesmo de o galo cantar.

Aquelas sombras ainda estão me olhando, com a mesma contemplação de meu irmão quando semeou seus versos num saco de padaria, antevendo que o fermento hierático de sua doida esperança não seria renovado a cada dia, como um alimento para os que ficaram, porque seu tempo não admitia disfarces, o café quedaria frio na xícara numa mesa qualquer da casa, o cão e seu olhar sem festa para a bicicleta muda ao canto, os jornais empilhados à espera da entrega, o pé de amora esquecido pela menina que fazia dele sua torre de marfim, a desonra do espanto na face de tantos que regressariam depois de solenizar o corpo à terra, amalgamada com o húmus de lágrimas conhecidas ou de prantos espontâneos, as pernas pânicas de minha mãe procurando apoio, a primeira derrota em nossa abundante história familiar, enquanto meu pai despachava seu olhar para um mundo distante, tentando compreender o deserto irrecorrível que habita todas as perdas.

Ele não precisava ir embora, muito menos naquele domingo de sol pálido, esconsos mistérios e notícias tristes. O céu podia esperar, porque havia outras urgências a corrigir. Aquelas sombras ainda vigoram em mim.

Ronaldo Cagiano

Nasceu em Cataguases (MG). Formado em Direito, está atualmente radicado em Portugal. É autor de Eles não moram mais aqui (Contos, Prêmio Jabuti 2016), O mundo sem explicação (Poesia, Lisboa, 2018), Todos os desertos: e depois? (Contos, 2018) e Cartografia do abismo (Poesia, 2020), entre outros.

Rascunho