Soldado ezequiel

Conto de Monique Revillion Dinato
01/12/2004

Do mato brotava uma escuridão completa e uma umidade quase névoa que tornava viva a respiração do homem, a farda empapada de suor e medo. Junto, uma algazarra de insetos cercando a clareira, e a luz frágil da lanterna feito vagalume, detalhes revelados a esmo enquanto a vista se acostumava. Evitava os rostos, depois voltavam nas noites, os olhos vagos, as bocas entreabertas, línguas repentinamente anfíbias a assombrar o sono.

Amordaçados é com dois s ou ç? Estivesse aqui o cabo Almeida ele saberia, faz faculdade à noite para ser advogado, aquele vai longe. Adiantar o relatório nessa chuva fina, equilibrando a prancheta sobre os joelhos e a lanterna com a pilha arriando só podia sobrar para mim, ora, quem mais. “Soldado Ezequiel, mantenha o posto até a chegada dos peritos, eu e o Almeida vamos tomar as providências necessárias”, esse capitão é um sacana. Nessa picada deserta que leva nada a lugar nenhum e eu de guarda com cinco defuntos, a madrugada promete. “Três homens e duas mulheres, todos amordaçados, as mãos amarradas para trás, baleados na cabeça, na parte frontal do crânio, aparentemente um único ferimento à bala em cada vítima. Os corpos foram encontrados próximos uns dos outros, como se houvessem sido emparelhados lado a lado para as execuções. Pelo exame inicial, estão mortos há menos de duas horas.” Mais detalhes, a perícia que levante, e tomara que não demorem. Só a mulher mais nova está descalça, de camisola, os pés sujos de barro, escalavrados, andou uns dois quilômetros trilha adentro, ferida aberta no calcanhar, uma ponta de pedra, talvez. Dois bagrinhos, o mais escuro beira os 18, o outro uns 20, 21, camiseta do Inter, colorado feito eu. Não fosse a denúncia anônima só ia se achar os corpos pelo cheiro, aquela coisa de juntar com pá, nem máscara dupla imersa em desinfetante segurando a fedentina. Devem ser todos parentes, precisou de uns quatro homens bem armados para cumprir a ordem, serviço mandado. Aparecer aqui, não aparecem, quem fez isso está comemorando com churrasco ou putaria, três vagabundas cada um num motel da zona norte, os filhos da puta. Aposto que mataram as mulheres primeiro, o velho na seqüência, depois um dos guris, por último o que devia no ponto, chefe novo impondo pavor, por qualquer mixaria mata a família, corta a mão, aleija, acaba com tudo. Depois pagam aborto, batizado, remédio de variz de tia velha, mas só quando homem nenhum levanta o olhar ao se cruzarem nas vielas. O guri deve ter mijado nas calças, implorado pela vida do pai, da mãe, da irmã, do irmão, talvez amigo, quem sabe esperando um milagre, uma esperança ainda. Nessa hora a gente deve pensar na vida que teve e naquela que não vai ter nunca, tudo muito rápido passando pela cabeça do sujeito, como uma onda quebrando de repente, lembrando do primeiro gol, de um corpo de mulher, do rosto da avó, do cheiro de chuva acalmando a poeira, da fome de feijão com ovo frito, de um só dia feliz. Talvez tenha deixado alguma guria de barriga, ou pela barriga tenha desejado mudar de rumo. Primeiro sonham com a bola, depois em ser soldado, outros em ser bandido, pensar muito mais longe só uns poucos, ou por muito bobos ou por muito decididos, e muito menos ainda os que conseguem escapar da história escrevendo um outro final, empurrando a porta e o caminho. O pivete deve ter lembrado dos 50 que devia e que quando ganhou no biscate deu na inscrição do supletivo, quem sabe querendo uma outra vida, uma vida qualquer, que não mais aquela. Nem pediu prazo, que pagaria semana, sabia que não era o dinheiro, nem era ele, havia virado exemplo, caso de demonstração. Talvez para isso tivesse algum tino, para entender das leis não escritas, mas que na distração esquecera, nos seus dezoito e poucos anos. Logo ele, que nunca tivera importância, virar carta marcada, não uma quadra de ases, mas um par de sete, inútil blefar. Daí deve ter doído essa consciência, e ter visto um a um dos seus tombando sem sentido, por conta do pouco que havia sido e por tudo o que não havia conseguido, que dor doída é essa que se abre feito visão de paraíso ao contrário, como uma verdade muito branca, como um erro nunca visto que se revela sempre presente, e sem chance de reparo. Pois que qualquer existência espera uma serventia, um feito para ser lembrada, que persista na memória daqueles que nos querem bem. Até árvore sabe de sua função de árvore, ainda lembra da angústia da semente, da ânsia pela luz. Então na vez dele não pediu mais nada, nem olhou para o que antes era pai, mãe, família, agora uma judiaria só de carne amontoada, sem ontem, sem amanhã. Só encarou o braço levantando a arma, a mão tensa, o dedo puxando o gatilho, o rombo se abrindo na cabeça, o sangue quente espirrando longe, se misturando com a chuva, vermelhando a terra, o guri caindo devagar, metade da cara desfigurada, o olho sobrante embaçando a vista, o corpo inerte amassando a grama, de qualquer jeito sobre uma macega, uma toca de tatu ali perto, os animais muito quietos desde o primeiro tiro.

Foi então que Ezequiel iluminou o rosto do moleque, e de cada um até a pilha da lanterna se esgotar de vez e de novo dar lugar a uma escuridão ainda mais intensa, e esquecendo dos pesadelos quis guardar na memória aqueles rostos, as expressões que sobravam. E na memória lembrou que havia plantado um pé de manga, duas folhas num caule insuficiente, para soltar as raízes do pote pequeno onde estava, plantou e sentiu: não vai vingar. Fruta doce em paisagem úmida, aqui faz frio, aqui chove demais, aqui não é lugar para um pé de manga. Depois espiou pela janela e viu a planta tremendo junto ao muro, numa solidão de coisa quente esquecida no meio da mesa. Nesses casos, sempre desejava que o contrariassem. Queria que amanhã houvesse um broto a romper a casca, uma força nova na planta abatida, um inseto rondando num pressentimento de viço. Então se ajoelhou e rezou um pai nosso alquebrado antes de entrar no mato para acalmar os engulhos e porque, como já acontecera tantas vezes, se sentia mais bicho do que gente. Mais tarde, no momento em que o capitão e o cabo Almeida retornaram avisando da greve da perícia, afobados com o caminho precário, o encontraram sentado numa pedra, mascando folhas de erva-cancrosa e com um ar ausente reparando no pio grave de uma coruja pousada ali perto. E quando foram carregar os corpos para as macas emprestadas do Instituto Médico Legal e ele se embrenhou ainda mais na trilha, e como que murmurando disse que ia aproveitar a lua que saía e procurar as chinelas da jovem, os dois se olharam e balançaram a cabeça, e, em silêncio, assentiram que Ezequiel andava mesmo muito estranho. E ao retornar sem as chinelas e ainda mais calado, os cinco corpos já embarcados nas grandes bandejas de plástico, e com um pano umedecido num fio d’água passou a limpar os pés da morta, como quem colhe uma flor ou afaga a mão que a recebe, os dois — agora sem trocar um olhar sequer ou qualquer gesto de comunhão que confirmasse a certeza — finalmente concluíram que ele não era homem o bastante para essas coisas de soldado.

Monique Revillion Dinato

Em 2004, foi finalista do Prêmio Casa de Cultura Mário Quintana, pelo livro de contos A liberdade dos varais (inédito).

Rascunho