A frase martelava em seu cérebro, como uma britadeira. Ao entrar e sair do seu prédio lá estava, em letras garrafais, escrita no muro lateral do edifício que se projetava sobre a rua, como se avançasse, guloso, sobre os passantes. Aquela garantia, peremptória, para quem nunca havia se interessado por isso antes a incomodava. Quem quer saber?, ela se perguntava. Pelo visto, muitas pessoas queriam, pois a frase solitária multiplicou-se e passou a habitar os lugares mais insólitos. Primeiro foram as incontáveis vans, elas mesmas demônios que tumultuavam o trânsito e atentavam a paciência dos cristãos e não-cristãos. Nos vidros traseiros, nos laterais, nos pára-choques, a frase se multiplicava, informando a todos daquele serviço exclusivo.
Não era a promessa que a inquietava. O que a fazia estremecer e a impedia de dormir na calada da noite eram as legiões de pessoas que procuravam o serviço de expulsão demoníaca. As quintas-feiras eram de muita cantoria e de sessões de exorcismo explícito. Ela ouvia, indistintamente, as vozes pelos microfones, e, o que era muito pior, via as inumeráveis pessoas que entravam, atraídas pela promessa: homens, mulheres, crianças, sem outro denominador comum que os demônios a serem expulsos. Altos ou baixos, jovens ou velhos, robustos ou fracos, arrogantes ou tímidos, seriam os demônios assim também tão variados, ou pertenceriam a uma espécie mais uniforme, como os tigres?
Observava seu entrar e sair, e não notava diferença alguma entre os seres na ida e na volta. No entanto, um estranho medo começou a tomar conta de sua vida: supondo-se que cada uma daquelas pessoas fosse endemoniada e que, a cada sessão de exorcismo o demônio pessoal de cada um fosse expulso por Jesus, conforme apregoado, para aonde iriam todos eles? Ficariam soltos pela rua, vagando em frente ao templo, aguardando que algum ser humano desavisado passasse para tomá-lo de assalto? Aguardariam, ali mesmo na porta, que as pessoas, liberadas, saíssem de alma lavada para conspurcá-las outra vez, trocando apenas de possessão? Ou infestariam os prédios vizinhos, como baratas, que desertam o antigo lar após uma dedetização, entrando nas casas mais próximas? Para o inferno é que não retornavam, a julgar pela quantidade de pessoas que recorriam aos incansáveis préstimos de Jesus, a cada quinta-feira.
Passou a prestar atenção redobrada em sua casa, para ver se algum demônio ali viera se esconder e a estava tocaiando para se apoderar de seu corpo. Não via nada de anormal, os copos não mudavam do local onde eram deixados, as torneiras não se abriam sozinhas, nem sequer as portas soltavam rangidos lúgubres. Os únicos objetos que se manifestavam eram a geladeira, com súbitos tremores ao ligar e desligar o compressor, e o sussurro constante de seu computador, ligado noite e dia, sempre disponível para alguma tarefa ou mensagem. Nem mesmo o telefone se manifestava. Não tocava, ninguém a procurava, seus amigos só se falavam por e-mails, ninguém tendo mais tempo para telefonar e bater papo.
As sessões semanais prosseguiam, cada dia mais concorridas. As vozes indistintas flutuavam pelo ar, até chegarem aos seus ouvidos, no sexto andar, antes tão calmo. A procura era tamanha que o templo vizinho sentiu a necessidade de abrir mais sessões de exorcismo, até que viraram diárias.
As legiões compareciam, fiéis. Cantavam e urravam em uníssono, caminhavam esperançosas na entrada e aliviadas, na saída, para, no dia seguinte, caminharem de novo, incessantes. A tenacidade daqueles demônios a espantava. Estaria ela segura, vivendo num mundo tão disputado? E, se ainda não tinha sido possuída, a quê isso se devia? Não seguia nenhuma religião, já até desaprendera a rezar as orações que, quando criança, lhe haviam ensinado. Nem sequer praticava ioga, ou meditação, pragas comuns. Talvez fosse sua dieta, cada dia mais simplificada pelo fato de odiar as lides de cozinha e não ter possibilidades de comer sempre em restaurantes. Nenhum demônio agüentaria alimentar-se somente de bolachas, café com leite e atum.
O vago medo que sentia, a princípio, lentamente foi-se transformando em despeito. E ela não se conformava. Olhava-se no espelho, procurando em si os sinais de possessão, mas não via nada. Olhos plácidos, um corte de cabelo prático, roupas simples e limpas, com uma certa elegância. Nenhum tique ou mania, nenhuma marca ou sinal. A sua casa ficava cada dia mais plácida, em flagrante contraste com a agitação cada vez mais frenética das sessões praticadas por Jesus — aquele Jesus incansável, que expulsava os demônios de toda uma população assediada, enquanto ela permanecia ali, imperturbável, mas não imperturbada.
Resolveu sair para ir ao cinema. Caminhou até a bilheteria e pediu um ingresso, sem nem mesmo ver o que estava passando. Podia ser apenas uma coincidência, mas o filme era sobre demônios e os seus perseguidores. Não, não era Jesus quem se encarregava deles no filme, talvez por isso as sessões fossem tão mais cruentas, e cheias de episódios de fracasso. No final, todos terminavam mal. Principalmente ela, que voltou, cabisbaixa, para casa.
A sessão de exorcismo estava para acabar, e ela se apressou a entrar no prédio antes que a legião saísse. O elevador havia pifado, foi necessário subir as escadas a pé, com uma vela que o porteiro providenciou, de má-vontade. Em frente à sua porta, colocou a vela na mureta da escada, enquanto procurava a chave dentro da bolsa. A chama bruxuleava, lançando sombras trêmulas sobre as paredes do longo corredor. Ela enfiou a chave na fechadura de seu apartamento, e a luz fraca fez o número da porta, 606, dançar e se alongar. Tateou, buscando o interruptor. No ambiente familiar, tudo estava na mesma calma e tranqüilidade de sempre.
A vela ficou esquecida sobre a mureta da escada, lançando sombras cada vez mais agitadas sobre as paredes do corredor. Lá fora, a sessão de exorcismo havia terminado, e Jesus, exausto, entregava-se a um merecido repouso. Vinda não se sabe de onde, uma lufada de vento derrubou a vela, que rolou até um saco de lixo que alguém não tivera ânimo de despejar na lixeira.
No silêncio e na escuridão de seu apartamento, ela não pode examinar seu rosto para procurar os sinais de possessão. Lá fora, as labaredas silenciosas pareciam caminhar diretamente para sua porta, numa dança lúgubre. Tossindo, ela adormeceu decidida a abandonar essas bobagens demoníacas. Jesus, com certeza, depois de milênios de serviço, já devia ter se aposentado, bem como os demônios.