Smolenskaia

Conto de André de Leones
01/08/2009

EU FIQUEI UM BOM TEMPO PREOCUPADA com o que todo mundo que eu deixei lá em Smolensk podia estar pensando. Eu não queria que eles pensassem que eu vim pra Israel pra virar prostituta. Você anda pelas ruas de Jerusalém e não vê prostitutas. Eu ia morrer de fome se tivesse que ganhar a vida trepando em Jerusalém porque eu nem ia saber por onde começar. Acho que se fosse o caso eu ia ter que mudar de cidade, ir pra Tel Aviv ou pra Eilat. Ou então dar o fora pra Europa. Se é pra virar puta, que seja em Londres. Mas eu não fiz nada disso. Quer dizer, eu não virei puta. Eu não vim pra Israel pra virar puta. E então eu estava bem preocupada com o que todo mundo que eu deixei lá em Smolensk estava pensando porque quando eles se dão ao trabalho de pensar alguma coisa, meu Deus, nunca é uma coisa boa. Pra eles, era muito melhor eu me afogar no Dniepre do que vir pra Jerusalém virar prostituta. E o pior é que eu não estou aqui trepando por dinheiro. Trepar eu trepo por esporte, não por dinheiro — eu sempre dizia isso pro Yehuda e ele se dobrava de tanto rir. Mas o Yehuda sempre deixava algum dinheiro pra mim e então eu me sentia assim meio puta. Acho que ele percebia e dizia eu estou só querendo ajudar, não se sinta mal por isso, ok? Então eu dizia ok e puxava ele pra cima de mim e a gente fazia mais uma vez antes que ele fosse embora correndo porque ele era da tsavá e estava sempre atrasado pra salvar o Estado de Israel. Quando eu comprei a papelada dizendo que eu era judia e podia vir pra Israel o sujeito que vendeu disse que eu podia me dar muito bem por aqui, é uma terra muito boa quando você sabe o que quer. Eu tive que vender tudo o que eu tinha dentro de casa e ainda juntar com a grana que eu recebi quando fui mandada embora da fábrica junto com todo mundo, as meninas todas desesperadas porque perder o trabalho assim de uma hora pra outra com aquela rússia de crianças que elas tinham e os maridos que elas foram arranjar não devia ser nada fácil. Eu tive sorte, acho. Digo, de não me casar nem engravidar de ninguém e botar um monte de filhos nesse mundo cinza-escuro que Deus parece que criou e depois deixou pra lá porque ia ser muito chato fazer o que o padre lá em Smolensk diz que Ele faz, olhar por nós e coisa e tal. Minha mãe e meu padrasto foram lá no apartamentozinho que eu alugava em Smolensk saber o que estava acontecendo. Eu disse estou indo embora pra Israel. Mas você é cristã, minha filha. Eu apontei a papelada em cima da estante, uma das poucas coisas que eu não tinha conseguido vender, e falei ali diz que eu sou judia e que eu posso fazer a tal da alyiah. Minha mãe perguntou fazer o que e meu padrasto disse acho que é isso de os judeus irem pra Israel. Eu concordei dizendo é isso mesmo, mãe. Ela então suspirou e disse bem assim desse jeito você vai é virar puta lá.

QUANDO A MULHER VEIO ME DIZER que a menina ia embora para Israel, eu confesso que não achei nada demais. O problema é que todo mundo achou. Eu estava sentado na minha poltrona com a edição do dia anterior do Izvestia no colo cantarolando Ob-la-di, ob-la-da e ela irrompeu na sala berrando que a menina ia embora e nós tínhamos que impedi-la. Embora para onde?, eu perguntei. Israel, ela respondeu. Isso não está certo. Se existe uma frase que a mulher gosta de repetir, esta frase é: “Isso não está certo”. Ela diz isso o tempo todo e em relação a tudo, desde a medida exagerada de açúcar que eu coloco na minha xícara de café até alguma coisa que os manda-chuvas lá em Moscou por acaso estejam fazendo. Eu disse que, se Dúnia queria mesmo ir, não havia muita coisa que a gente pudesse fazer. Ela já tem vinte e quatro anos e ainda não se casou. Se surgiu alguma oportunidade, sobretudo agora que a fábrica fechou e ela perdeu o emprego, o que tem a perder? A resposta da mulher foi peremptória: A dignidade, homem. A dignidade. Como assim? O que você acha que uma moça russa sem estudo vai fazer em Israel, homem? Eu encolhi os ombros e respondi: Trabalhar. Ela fez uma careta, como se estivesse levando uma descarga elétrica, e forçou uma risada irônica dizendo: Não seja ingênuo. A mulher sempre espera o pior e foi preciso algum tempo para ela se convencer de que Dúnia não tinha ido para Israel para se prostituir. Acho que, se fosse o caso, eu disse a ela, ela teria ido para a Europa. O que você entende disso? O que todo mundo entende, respondi. E não se falou mais nisso. A palavra “prostituta” só voltaria a ser pronunciada dentro de casa alguns anos depois, quando a menina mais nova engravidou de um mecânico de Mokh-Bogdanovka. E a cena foi praticamente a mesma: eu sentado em minha poltrona com o Izvestia do dia anterior no colo ouvindo Nowhere man quando a mulher irrompeu na sala berrando que Nastenka estava grávida e que isso não estava certo.

LOGO QUE EU SAÍ DO CENTRO DE ABSORÇÃO e arrumei trabalho como garçonete eu conheci o Yehuda. Eu bati os olhos nele e vi que ele era casado. Não, ninguém aqui usa aliança, foi mais uma coisa de instinto mesmo. Mulher sabe dessas coisas. Mas eu não me importei, não. Ele foi muito gentil comigo. Ele é muito gentil comigo. Ele estava sentado numa mesa e estava todo uniformizado e olhava pra mim. Eu sorri pra ele quase sem querer. Ele nem tentou mentir pra mim. A gente foi pro meu canto depois que eu saí do trabalho, eu moro num quarto-e-sala ali no centro, e antes mesmo de acontecer qualquer coisa ele disse que era casado e sorriu quando eu disse não me importo, não. Ele morava com a mulher e a filhinha num apartamento em Katamon, não muito longe do restaurante onde eu trabalhava e onde a gente se viu pela primeira vez. Um dia eu vi ele e a mulher e a filhinha atravessando a King George, acho que iam pro Parque da Independência. Ela era uma mulher que devia ter sido bonita quando eles se conheceram e se casaram mas que depois engordou um pouco. Mas o Yehuda gostava de gordinhas porque ele vivia dizendo que eu tinha que engordar um pouco. Depois que ele voltou do Líbano as coisas ficaram um pouco complicadas porque eu meio que demorei a reconhecer ele. Uma amiga minha que também é garçonete e também namorava um soldado naquela época disse que eles sempre voltam assim e que eu devia era rezar pra ele, com o passar do tempo, voltar a ser o Yehuda de antes ou pelo menos algo que se parecesse ou lembrasse o Yehuda de antes. Com o tempo, ele foi ficando menos tenso e calado, mas nunca voltou a ser o Yehuda de antes. Eu sempre imagino coisas e pensei que no Líbano eles tinham pegado o Primeiro Yehuda e substituído pelo Segundo Yehuda. Eu morria de medo que estourasse outra guerra e eles pegassem o Segundo Yehuda e trocassem pelo Terceiro Yehuda, que não devia ser coisa melhor. As coisas nunca melhoram com a guerra. Mas não é que ele tenha começado a me maltratar ou coisa parecida. Era mais uma coisa dele com ele mesmo. Uma tristeza, uns pesadelos, lembranças ruins, essas coisas. Ele sempre me tratou muito bem. Ele deixava dinheiro e cuidava de mim e eu fazia tudo o que ele queria, estava sempre esperando por ele. Nunca enchi o saco dele. Nunca disse pra ele largar a mulher e ficar só comigo. A minha amiga que também é garçonete e que também namorava um soldado que também era casado vivia dizendo isso pro homem dela. Eu falava pra ela é burrice. Eles fazem a gente se sentir bem, deixam algum dinheiro e depois vão embora pras casas deles. Por que enfiar um homem dentro de casa pra sempre? Mas ela dizia que não, que o homem dela tinha que ser só dela. Brasileira. As brasileiras não são muito espertas. Pelo menos as que eu conheci aqui. Nem é o caso de dizer que elas são burras, não é isso. Elas não são, como é que se diz, elas não são pragmáticas. Yehuda gostava de saber das palavras. Digo, do significado delas. Ele me explicou o que o nome dele significava, me contou toda uma história, mas eu acabei esquecendo e fiquei com vergonha de perguntar, pedir pra ele explicar de novo. Eu falei pra ele que o nome da minha cidade natal vem de uma outra palavra que significa “solo negro”. Não é russo, expliquei. Ele perguntou o chão lá é escuro. Eu disse que nunca tinha prestado atenção e ele riu. Ele estava sempre rindo de mim. Eu gostava disso, mesmo quando tinha a impressão de que ele ria um pouco demais. Mas depois ele começou a rir bem menos do que antes. O Primeiro Yehuda ria bem mais do que o Segundo Yehuda. Ele me perguntava se eu queria ser garçonete pra sempre. Eu dizia não me importo, minhas contas estão em dia, não me falta nada. Então ele não dizia nada e ficava me olhando de um jeito engraçado, como se tentasse me entender e não conseguisse. Acho que o problema era esse mesmo. Não tinha nada aqui pra ele entender, nada além do que ele via e tocava. Daí eu dizia pra ele é só isso mesmo, não tem mais nada.

Ilustração: Maureen Miranda

ERA MUITO GOSTOSO NO COMEÇO quando ele ficava repetindo o meu nome, Nastenka, Nastenka, Nastenka. Eu expliquei para ele que o meu pai era professor e que esse nome e o nome da minha irmã eram nomes de personagens de Dostoiévski, mas foi a mesma coisa que tentar explicar o que é a Constante de Planck para uma morsa com problema de déficit de atenção. Os homens aqui são muito burros. Ele perguntou sobre a minha irmã, primeiro se era verdade que ela tinha virado prostituta em Israel e, depois, se ela não era filha do meu pai, como é que meu pai tinha escolhido o nome dela? Eu tive de explicar que o meu pai conheceu a minha mãe quando ela estava grávida e o pai de Dúnia tinha ido embora para Londres, dizem que se meteu com a Bratva na peeski e morreu por lá. Meu pai se apaixonou pela minha mãe e assumiu o bebê como se fosse dele e escolheu o nome, Dúnia. Isso é bem bonito, disse Yuri. Criar uma filha que não é sua como se fosse sua. Porque meu pai criou todos os filhos que eram dele como se não fossem dele hahaha. Quando estava calado ou apenas repetindo o meu nome, Nastenka, Nastenka, Nastenka, Yuri era um ser humano quase suportável. Ele era burro como os outros, está certo, mas não tinha essa postura provinciana em relação a mim porque eu vivi fora de Smolensk por algum tempo e enfileirei dois ou três diplomas. Minha mãe nunca entendeu por que eu não arrumei um cargo de professora e fiquei lá por Moscou. Para dizer a verdade, eu também nunca entendi o que se passou. Sei que, quando percebi, estava de volta a Smolensk lecionando para um punhado de adolescentes com piercings até no ânus. Eu também nunca entendi o que se passou entre eu voltar para Smolensk e, de repente, certa manhã, assim que eu acordei para ir à escola, me ocorrer assim, do nada, que a minha menstruação estava atrasada havia quase duas semanas. Claro que a minha mãe disse: Isso não está certo. E se descabelou como se eu tivesse quinze e não vinte e seis anos. Como eu disse, era muito gostoso no começo. Fui à oficina dele em Mokh-Bogdanovka contar a novidade. Ele estava segurando uma peça qualquer, que caiu no chão junto com o queixo dele. E eu entendi. Dei as costas e fui embora e não atendi mais as ligações dele. A menina completa dois anos amanhã. Ano que vem iremos a Israel visitar tia Dúnia, a prostituta da família.

NASTENKA SUSPIROU DO OUTRO LADO DA LINHA, ela vivia suspirando quando eu dizia alguma coisa que ela não achava legal, isso desde quando a gente era pequena, como se ela fosse a irmã mais velha e eu a caçula. Nastenka suspirou e disse quando eu for te visitar daqui a uns meses eu não quero saber de você metida com homem casado, não. Eu disse sim, senhora. Depois que o Yehuda me procurou dizendo que não podia mais me ver por um monte de razões que eu nem me dei ao trabalho de ouvir, eu confesso que fiquei mal por uns dias. Mas depois eu pensei que era até melhor. Foi o que Nastenka disse também. Eu fiquei uns três dias sem sair de casa e quase perdi o emprego. Mas aí, num domingo desses, eu coloquei um vestido bonito que o Yehuda tinha me dado logo que a gente começou a se ver e fui dar uma volta. Logo que eu pisei na calçada, o vento me acertou em cheio, como se me pegasse pelos ombros e me sacudisse, e eu sorri achando aquilo tudo muito gostoso e me senti bem. Agora eu passo o tempo com um árabe que eu conheci no shuke outro dia. Não é sempre que ele vem porque é complicado, ele é palestino, mas não é casado, pelo menos é o que ele diz. Uma, no máximo duas vezes por semana. A gente não tem muito o que conversar porque o hebraico dele é horrível e a única coisa que eu sei falar em árabe é xucram depois que ele vem aqui dentro de mim e me faz gozar como se a única coisa que existisse no mundo fosse isso, gozar. Depois ele tem que sair correndo porque não tem permissão pra dormir em Israel e precisa voltar pra Cisjordânia antes que a noite caia de vez, e a noite quando cai aqui em Israel é sempre assim, de repente, como se quisesse assustar todo mundo e não deixar a menor dúvida de que anoiteceu.

André de Leones

Nasceu em Goiânia (GO), em 1980. É autor dos romances Eufrates (José Olympio, 2018), Abaixo do Paraíso (Rocco, 2016) e Terra de casas vazias (Rocco, 2013), entre outros. Página pessoal: andredeleones.com.br.

Rascunho