Síndrome da igualdade comparada

Um conto de Cunha de Leiradella
01/10/2003

O carro dobrou a esquina, devagar. Era um carro grande, de quatro portas, e o homem olhava a rua atentamente.

— Deve ser por aqui. Eu só vim aqui uma vez, com Valdo, mas você sabe como é a minha memória. Não falha nunca.

De repente, sorriu e deu uma palmada no volante, e apontou um letreiro luminoso.

— Eu não falei?

Freou o carro e recostou-se no assento.

— Viu? Eu sabia. Eu nunca esqueço um lugar. E olha que só vim aqui uma vez.

A mulher não respondeu e o homem olhou os carros estacionados ao longo do meio-fio.

— O que dana é isto. O governo fala, fala, mas fazer, que é bom, nada.

Apontou a fila, estendida até depois do cruzamento.

— Sabe o que é que eu fazia, se fosse prefeito? Mandava rebocar todo mundo.

Fez uma pausa e apontou a porta do restaurante.

— Mas você vai gostar, você vai ver. Valdo diz que é um dos melhores restaurantes que tem por aí.

Um casal chegou junto da porta e um garçom veio recebê-lo. O homem apontou o casal, conversando com o garçom.

— Será que era preciso fazer reserva?

A mulher não respondeu. O casal entrou, seguido do garçom, e o homem engrenou a marcha do carro.

— É melhor você entrar. Mas escolhe uma boa mesa, viu? Se for preciso, fala com o maître. Valdo diz que…

A mulher saiu do carro sem responder. Entrou no restaurante e nem esperou o garçom acompanhá-la. Sentou na primeira mesa vaga e acendeu um cigarro, e dispensou o garçom com um gesto. Pouco depois o homem entrou, sorrindo, e sentou-se.

— Eu não falei? Uma cervejinha e ó, o guarda só faltou cair de quatro. Logo, logo, apareceu uma vaga. Ô paísinho corrupto.

Recostou-se na cadeira e olhou o salão.

— Mesa ótima. Precisou falar com o maître?

A mulher não respondeu e o homem ajeitou-se na cadeira.

— Já pediu?

A mulher continuou sem responder e o homem abriu o guardanapo e colocou-o em cima dos joelhos.

— Podia ter pedido.

— Prefiro que você peça.

O homem chamou um garçom. O garçom aproximou-se e colocou dois cardápios em cima da mesa. A mulher continuou fumando e o homem leu o cardápio atentamente.

— Valdo diz que o peixe daqui é ótimo.

A mulher não respondeu e o garçom inclinou-se, sorrindo.

— Ótima escolha, senhor. O nosso peixe à brasileira…

— Como está o camarão? Eu vim aqui recomendado por um cliente antigo de vocês. O Dr. Valdo Menezes.

— Conheço muito o Dr. Valdo, senhor. O nosso camarão…

— E a lagosta? O Dr. Valdo…

— Todas as nossas lagostas são importadas, senhor.

O homem sorriu, satisfeito, e entregou o cardápio ao garçom.

— Ótimo. Traz uma das grandes, bem caprichada.

— Thermidor, senhor?

O homem olhou a mulher. A mulher continuou imóvel, olhando a ponta fumegante do cigarro. O homem olhou o garçom e acenou com a cabeça.

— Pode ser.

A mulher fez um sinal ao garçom.

— Pra mim, filé com legumes.

O homem olhou a mulher.

— Mas eu pedi…

A mulher esmagou o cigarro no cinzeiro e continuou falando com o garçom.

— Na chapa, bem malpassado.

O garçom anotou o pedido e pegou o cardápio da mulher.

— Bebida, senhor?

— Diz o Dr. Valdo que vocês têm uns vinhos alemães muito bons.

— Auslese, senhor?

— Pode ser. Mas bem gelado. Com este calor…

O garçom afastou-se e o homem ajeitou-se na cadeira e olhou o salão.

— Até que Valdo tem razão. É um senhor restaurante, realmente.

A mulher não respondeu e o homem recostou-se na cadeira e meteu os polegares nos bolsos do colete.

— Encontrar isto aqui, depois de tanto tempo, já valeu a pena.

Fez uma pausa e olhou a mulher.

— Você não acha que valeu a pena?

A mulher não respondeu e o homem voltou a olhar o salão. Passado algum tempo a mulher acendeu um cigarro.

— Que filme vamos ver hoje?

O homem, ainda olhando o salão, não respondeu. A mulher puxou uma tragada e repetiu a pergunta.

— Que filme vamos ver hoje?

— Que filme nós vamos ver? Um que está passando naquele shopping novo. Mas por que é que você perguntou?

A mulher riu.

— Quando a gente janta fora não é dia de cinema?

— Valdo diz que o filme é ótimo. É sobre um menino que se perdeu…

— Durante a guerra e, depois, soube que os pais tinham morrido.

O homem olhou a mulher, espantado.

— Como é que você sabe? Você não viu o filme.

— Vi o anúncio na televisão.

— Valdo diz que a fotografia é lindíssima.

Fez uma pausa e acenou com a cabeça.

— Você vai gostar, você vai ver.

Calaram-se. O homem recostou-se na cadeira e olhou o salão e a mulher ficou imóvel, fumando.

— Lúcia vai deixar o Valdo.

O homem voltou-se, num gesto brusco, e olhou a mulher, espantado.

— Lúcia vai o quê?

— Vai deixar o Valdo.

— Lúcia vai deixar o Valdo? E como é que Lúcia vai deixar…

A mulher riu.

— Deixando, ora.

— Mas isso é um absurdo. É um absurdo e você sabe que é um absurdo. Lúcia não pode deixar o Valdo. Principalmente, assim de repente, sem avisar.

— Lúcia diz que Valdo também acha.

— Mas é claro que Valdo tem que achar. Casamento é casamento. Uma coisa muito séria.

A mulher não respondeu e o homem recostou-se na cadeira.

— Mas como é que você soube? Ainda ontem Valdo esteve lá no banco e não me disse nada. Disse, sim, que tinha dado um carro novo para Lúcia, de presente.

A mulher puxou uma tragada profunda e bateu a cinza do cigarro no cinzeiro.

— Lúcia só falou com ele hoje.

— Mesmo depois do presente?

A mulher riu.

— Vai ver, Lúcia não gostou.

— Como não gostou? Carro novo é carro novo. Você sabe muito bem que carro novo é carro novo.

Calou-se e ajeitou-se na cadeira, e passou o guardanapo no rosto.

— Lúcia não pode deixar o Valdo. Você conhece Valdo. Valdo vai ficar abaladíssimo.

Fez uma pausa e olhou a mulher durante alguns instantes.

— Será que Lúcia está fazendo isso só porque Valdo…

Respirou fundo e abanou a cabeça com força.

— Mas não é possível que Lúcia não entenda. Aquela menina, para Valdo, é apenas distração, todo mundo sabe disso. Valdo jamais faria fosse o que fosse, que pudesse prejudicar Lúcia e as crianças. Não viu o presente do carro? Valdo tem o maior respeito por Lúcia e Lúcia sabe disso. Aquela menina é, apenas, uma distração, todo mundo sabe disso.

— Lúcia já decidiu.

— Mas decidiu como? Como é que Lúcia pode ter decidido, se Valdo nem sabia? E, além do mais, se Lúcia fizer isso, como é que fica a carreira de Valdo? Você sabe que Valdo foi promovido agora e o menor escândalo…

Fez uma pausa e passou o guardanapo no rosto.

— Será que Lúcia está fazendo isso só para obrigar Valdo a voltar para o Rio?

— Lúcia quer voltar pro Rio, mas sozinha.

— E perder tudo que tem aqui? Você sabe quanto custa, hoje, um carro zero, igual ao que Valdo deu a Lúcia? Custa uma fortuna. Mais de cinqüenta mil dólares.

A mulher não respondeu e o homem debruçou-se sobre a mesa.

— Será que Lúcia está doente? Vai ver, de repente…

Fez uma pausa e recostou-se na cadeira.

— Quem sabe, às vezes, um bom médico não resolve? Tem médicos aí, você sabe muito bem, você mesma já consultou alguns e com ótimos resultados, que, eu tenho certeza, podem resolver o problema. O importante, é não deixar que Lúcia cometa uma loucura, concorda comigo?

A mulher não respondeu. Puxou uma tragada profunda e esmagou o cigarro no cinzeiro, e olhou o homem durante algum tempo.

— Quê que você faria se eu fosse Lúcia?

O homem olhou a mulher, boquiaberto.

— Se você, o quê?

— Se eu fosse Lúcia.

O homem não respondeu. Ajeitou-se na cadeira e olhou a mulher fixamente.

— O que é que eu faria se você fosse Lúcia? Foi isso que você perguntou?

A mulher não respondeu e o homem continuou olhando para ela. Ficou assim algum tempo e, de repente, deu uma gargalhada.

— Mas é claro que eu não faria nada. E não faria nada, porque você não é uma mulher igual a Lúcia.

Fez uma pausa e voltou a olhar a mulher.

— Você é uma mulher igual a Lúcia?

A mulher não respondeu e o homem deu outra gargalhada.

— Claro que você não é uma mulher igual a Lúcia. Você sabe que eu nunca me casaria com uma mulher igual a Lúcia.

A mulher baixou a cabeça e olhou a toalha da mesa.

— É. Você tá certo. Realmente, eu não sou uma mulher igual a Lúcia.

O homem riu.

— Claro que você não é uma mulher igual a Lúcia. Você é você, e você sabe muito bem quem você é.

Calou-se e recostou-se na cadeira e meteu os polegares nos bolsos do colete.

— Ou não sabe?

A mulher não respondeu. Acendeu um cigarro e puxou uma tragada profunda e o homem olhou para ela e sorriu.

— Sabe o que é que nós estamos precisando? Numa noite como esta e depois de uma notícia igual a essa?

Chamou o garçom e cancelou o vinho, e pediu uma garrafa de champanhe.

Cunha de Leiradella

Português de nascimento, residiu 47 anos no Brasil. É autor de vários romances, o primeiro, O longo tempo de Eduardo da Cunha Júnior, vencedor do Prémio Fernando Chinaglia 1981, e o mais recente, Apenas questão de qualidade, vencedor do Prémio Maria Ondina Braga 2015, já em Portugal. Publicou os contos de Turistas são os outros, vencedor do Prêmio Paraná 1990 e Fractal em duas línguas, vencedor do Prêmio Cruz e Souza 1995. É dramaturgo roteirista. O conto A vida, ritos de passagem pertence à antologia Pesca de arrasto, ainda inédita.

Rascunho