Simples

Conto de Marcelo Carneiro da Cunha
01/05/2005

A garota tinha falado que sim. Tinha garantido, a gente ia sair hoje, duas semanas de quase, quem sabe, e agora um sim, finalmente. Eu tinha comprado coisas, tinha pensado em diálogos pra gente, arrumado a casa, isso tudo. Ela ligou às oito pra dizer que era uma pena, mas não ia dar, quem sabe outro dia. Fiquei entre dizer que tudo bem e o que ela estaria fazendo amanhã, depois da manhã, semana que vem, mas não fiz nada disso, deixei pra lá.

Na locadora eu vi que eles tinham lançado em dvd o melhor filme de todos os tempos. Fui pra casa com ele.

O melhor filme de todos os tempos se chama O Boulevard do Crime, de Marcel Carné com roteiro do poeta Jacques Prevert, que escreveu mais um hino do que um filme.

Nele, Garance, como a flor, diz a Baptiste, o apaixonado, incapacitado para tudo que não seja arte, ela diz a ele que o amor é muito simples. A frase é tão bela quanto Garance, e tão impossível quanto ela. Ambas terminam o filme arrastadas pelo turbilhão da vida, que adora belas frases quase tanto quanto adora mostrar o quanto elas não passam de belas frases.

Acredito que Einstein também disse que a Teoria da Relatividade era simples. Simples para um fóton, talvez, cara-pálida, que não precisa fazer nada a não ser se comportar como partícula e como onda ao mesmo tempo, aparentemente sem precisar de idas ao analista para aprender a lidar com essa ambigüidade.

Eu e a minha cerveja vendo o filme, com uma lágrima furtiva rolando rótulo abaixo, até conseguimos acreditar que o amor possa ter sido simples antes, quando nós, humanos, éramos muito mais simples e morríamos de qualquer doença conhecida, ou de frio, flecha ou fome, antes mesmo dos quarenta anos de idade. Acho que os nossos avós conheciam um amor simples, muito provavelmente porque quase inexistente e quase nunca colocado à prova pra valer, fora dos livros ou do teatro.

Mas isso tudo acabou. Inventamos a penicilina, o trabalho nas fábricas, o salário, a agricultura moderna, deixamos de morrer tão facilmente e passamos a ter que nos preocupar com o que fazer com a vida e por tabela, com o amor. Ele assumiu uma porção insustentável nas nossas longas existências, agora com dois protagonistas dotados, em tese e cada vez mais na prática, dos mesmos poderes. Nos disseram pra irmos em frente e sermos, cada dupla formada por homem, mulher, homem, homem, mulher, mulher, o que seja, sermos maridos, mulheres, namorados, amantes, amigos, interlocutores, o que mais for, sem nenhum manual de comportamento que valha alguma coisa. E temos que fazer isso até uns setenta, oitenta anos de idade, em média.

Como, como, como?

Simples, nos diz Garance, bela, amoral e insensata, como a flor.

Marcelo Carneiro da Cunha
Rascunho