Sempre vendaval

Conto de Érica Busnardo
Érica Busnardo, autora de “Passagens”
01/11/2004

A docilidade do olhar ainda era a de 25 anos atrás. O fio de voz na hora de confirmar os votos demonstrava a mesma emoção de quando ele disse sim, há um quarto de século. É verdade que a mulher estava mudada. Umas rugas ao redor dos olhos insistiam em aparecer, mesmo depois do lifting especialmente feito para a ocasião. Entretanto, ainda era a mulher por quem se apaixonara. Nem mesmo os defeitos e as pequenas chateações que só se descobriu depois do primeiro ano juntos escondiam aquela mulher. Depois de 25 anos, ela ainda tinha a irritante mania de abrir a torneira quente da pia quando ele estava debaixo do chuveiro, mas era a mulher que escolhera para passar os melhores momentos de sua vida.

Enquanto fingia ouvir atentamente o que o padre falava, lembrou-se da menina sorridente por quem se apaixonou, ainda na faculdade. Mas agora estava mudada. Recordou-se do tempo em que completaram dez anos juntos. Na época, chegou a pensar que não a amava mais. Inventou alguns defeitos e aumentou outros. As qualidades foram enterradas pelo cotidiano, preocupações, pressões dos anos. Por um bom tempo deixou de enxergar nela a sua essência. Pensou em divórcio, mas deixou pra lá. Os filhos e a estabilidade financeira alcançada depois dos anos juntos davam preguiça de pensar nisso. Ficou um relacionamento morno, quase oficial. Foi uma fase perigosa.

O fantasma começou a ir embora quando ele não encontrou na mocinha de 20 anos, que conheceu no trabalho, o cheiro e o hálito próprios dela. Algum tempo depois, sentiu falta da maciez do toque dela quando passou uma noite despretensiosa com outra mulher que conheceu num bar, numa noite de bebedeira com os amigos. Passaram-se meses até que ele entendeu que não existiam pernas que o seguravam com a mesma determinação que as dela. E não viu nas outras mulheres a mesma expressão do gozo. Sentiu falta do modo suave com que ela o beijava e do jeito manhoso que fazia para se virar e dormir.

Neste dia apareceu em casa com flores do campo. Ainda se lembrava de que ela gostava deste tipo de flor e isso a surpreendeu. Namoraram como havia muito não faziam. E novamente ele pôde sentir o cheiro e o hálito dela. E novamente sentiu o toque suave de suas mãos, e novamente sentiu as pernas dela se cruzarem sobre suas costas, como um incentivo para que ele fosse mais fundo. Enxergou a satisfação do gozo, recebeu o beijo suave e a viu se virar manhosamente do lado. Ela ainda estava ali.

Uma pergunta do padre direcionada a ele o trouxe de volta do seu passado. Olhou-a. Estava linda num vestido preto. Certa vez, disse-lhe que essa cor não combinava com ela, mas hoje percebeu o engano. Errou da mesma forma quando há muito tempo a acusou de ser negligente com as filhas. Do altar, ele olhou para as meninas. Estavam grandes. Tinham se tornado mulheres, formidáveis mulheres, maduras e inteligentes como eles queriam que fossem.

Voltou a olhar para ela, que parecia muito atenta ao sermão. Por trás dela havia uma janela por onde entrava uma brisa agradável. Fechou os olhos quando o vento bateu em seu rosto e lembrou do dia em que colocou um terno pela primeira vez, há 25 anos. Caía uma chuva forte, raios e trovões prenunciavam um mau dia.

“Acho que não vai ter casamento”, falou ao padre depois de ver as flores da decoração indo embora e o tapete vermelho se levantando. Diria mais tarde que a frase foi para quebrar o gelo e amenizar a situação, já que a sogra chorava desesperadamente a cada vaso estilhaçado ao chão pelo forte vendaval.

Encantou-se quando a viu colocar os pés encharcados na entrada da igreja. Vestida de branco, cabelo escorrido sem a grinalda, os olhos borrados pela chuva e pelo choro. E ela ria. Até hoje ele não sabe se ria da situação ou de nervosismo. Nem a tempestade nem a pane elétrica no meio da cerimônia os impediram de prometerem serem fiéis, se amarem e se respeitarem pelo resto de suas vidas. Durante os 20 minutos da cerimônia das bodas de prata, ele pôde fazer um balanço daquela história de amor. Sim, eles foram feitos um para o outro e eram, à maneira deles, felizes.

Novamente ele olhou pela janela, atrás dela, e notou que as estrelas tinham desaparecido. A brisa agradável virou um vento mais intenso e derrubou um castiçal no salão.

Era o prenúncio de chuva e vendaval.

Érica Busnardo

É jornalista.

Rascunho