Sem abrir mão da ironia

A poesia de Hans Magnus Enzensberger busca fortalecer a consciência crítica sobre o entorno
Hans Magnus Enzensberger, autor de “Destinatário desconhecido: uma antologia poética (1957-2023)”
01/12/2024

Após a Segunda Guerra Mundial, o jovem Hans Magnus Enzensberger (1929-2022) almejava a “poesia sem pureza”, queria traduzir o chileno Pablo Neruda, o peruano César Vallejo e mais e mais. As muitas vozes da poesia que ele traduz, edita e promove permeiam sua própria criação. Redundam numa obra profícua, mesmo assim coerente em termos de estilística e engajamento, composta por ensaios, traduções e edições, mas em que a poesia é essencial.

A antologia poética preparada por Daniel Arelli deve ser saudada com satisfação pelos leitores brasileiros, uma vez que vem proporcionar acesso a essa poesia moderna absorvida pelas renovações de valores de uma era paradigmática, plena de debates. Uma contribuição para a poesia e para os estudos literários comparativos.

Com “raiva e paciência para soprar o pó mortífero nos pulmões do poder” dita um verso-lema dessa poesia que, vez ou outra, amaina a fúria crítica para transigir e rolar a pedra morro acima. A Brecht, que dirigira aos pósteros o pedido de benevolência, o verso de contestação responde categórico “nenhum póstero, nenhuma benevolência”.

Há uma busca das palavras elementares que correspondam à urgência das circunstâncias. Elas recortam dramaticidades em cenas cruciais, terminantes como a “carta de adeus em cima da mesa da cozinha”. É uma poesia que conclama a literatura, “os colegas” em vocativo, à consciência crítica contemporânea, à compreensão da agenda política da revista Kursbuch; é uma poesia que exige parcimônia nos escólios e contenção dos clichês.

Quando os versos se deslocam do dado imediato, dão melhor mostra da elaboração da linguagem, como por exemplo através das turvas imagens pressagiosas em Nuremberg 1935. Breve canção de adeus à mobilidade é também um poema em que a linguagem, deixando repousar a fúria épica conclamante, adquire substância de pátina. Nesses entremeios que se atêm à letra, por um átimo restituindo em verso o ser humano abatido pela faina, é que a poesia cunha lenta e profundamente a laboração e o cansaço. Sóbria e imensa.

Os desígnios da poesia de Enzensberger transparecem na homenagem que ele presta ao escritor W. G. Sebald (1944-2001), na introdução do livro Inaudito (inédito em português, composto por textos de Sebald e gravuras de Jan Peter Tripp):

Calou-nos fundo no peito,
quem de longe parecia vir
à terra natal estrangeira.
Que pouco o manteve.
Nada mais que rastrear vestígios
com o cajado de palavras
que vibra em sua mão.
[…]
Logo caía o manto da noite
mas ele seguia em frente,
por entre pesadelos
caminhava sem temor
em pesadas passadas.
Que a poeira se lhe tornou leve,
o sabemos por três linhas:
Assim eu flutuava em silêncio,
alto acima da terra
mal roçando flancos…

Sem a ingênua vaidade
Por ocasião dos oitenta anos de Enzensberger em 10 de novembro de 2009, o Süddeutsche Zeitung Magazin republicou uma entrevista conduzida por Dominik Wichmann e Georg Diez. Nela o escritor declara que nunca foi dotado da ingênua vaidade, atributo imprescindível para alguém se sentir bem no palco. Mil vezes preferia que as pessoas abrissem seus livros. Antigamente ele queria tudo, queria estar onipresente, ter razão, manter a razão. Questão de idade, sem jovens afoitos o mundo estaria perdido.

Depois de ser agraciado com o respeitável prêmio Georg-Büchner de Literatura, em 1963, Enzensberger foi morar na Itália, no México, nos Estados Unidos. Casou e mudou para a Noruega, onde viveu com a esposa numa bela casa de capitão. Queria fugir para longe dos conterrâneos, fugir da neurose alemã de estar sempre, obsessivamente, suspeitando: “será que esse médico é um deles? um nazista?”. Naquele tempo ele não entendia por que as pessoas logo fechavam as persianas, até se dar conta de que um povo não muda de um dia para o outro. Em 1964, ele retorna à Alemanha. “Estar aqui é esplendor”, cita Rilke sem convicção no poema Língua do país, remoendo o passado e antevendo o ranger dos dentes futuro.

Pressupunha que “os terríveis anos 50”, marcados por rígidas normas escolares do arco da velha, tinham se tornado démodé, que havia indícios de transformações das atitudes comportamentais na música beat, na liberdade sexual. Antes de ser movimento político, a coisa sucedia a nível molecular; o teatro do movimento político sobreviria mais tarde. Enzensberger não queria perder a transição.

O Grupo 47, do qual ele participou com outros escritores e críticos no pós-guerra alemão, foi a seu ver uma “coisa coagulada”, pessoas que numa época de repressão por acaso se juntaram para conversar. Em atitude defensiva.

Além de atuar na revista Kursbuch, ele admite ter sido outrora “insuportavelmente produtivo”. Insuportável para os outros, pois “um cara ambicioso demais incomoda. O negócio da literatura é assim, pessoas altamente talentosas, mas sem gana, enfrentam muita dificuldade”.

Revista Kursbuch
Embora não fosse o precípuo escritor da revista Kursbuch, Enzensberger escrevia textos de peso em quase todos os números. A Kursbuch foi fundada pela editora Suhrkamp e editada por Enzensberger e Karl Markus Michel entre junho de 1965 e março de 1970. Acompanhou preparativos, articulações e a derrocada do Movimento de 68 na Alemanha. O conteúdo dos vinte números do período não deixa dúvida quanto ao papel de opposizione extraparlamentare — assim evidencia um livro da italiana Mondadori em 1969 — que a revista exercia como fórum do pensamento político e cultural em diálogo com diversas metrópoles da Ásia, África e América Latina. Em junho de 1968, publica a Carta do Brasil, em que relata tanto as políticas de repressão dentro das universidades como as estratégias de guerilla urbana brasileiras. Enzensberger teve contato com o concretista Haroldo de Campos e com o crítico Anatol Rosenfeld. Era um mediador entre os campos estéticos múltiplos, mas, principalmente, no cenário de resistência às arbitrariedades políticas, um escritor rebelde ativo, que acentuou com seus artigos a condição internacional do protesto.

Já na Ankündigung einer neuen Zeitschrift [Anúncio de uma nova Revista], ele proclamava os respectivos princípios pelos títulos das colaborações Polêmica pelas palavras, O que acontece na realidade. A Kursbuch se colocava aberta a contribuições em forma de prosa ou poesia, independentemente de quão conhecido ou desconhecido fosse o autor, independentemente de sua língua ou origem. Não fosse a literatura capaz de proporcionar uma noção da realidade, a revista buscaria recursos através de protocolos, pareceres, reportagens, conversas polêmicas ou não-polêmicas, neste caso no formato de dossiês que comporiam cada número.

O dossiê Um estado de emergência não declarado oferece um panorama político do crescente autoritarismo que desde 1958 se escalonava como reflexo das leis de emergência (Notstandsgesetze), que fortaleciam o executivo nacional, na medida em que cerceavam a liberdade de expressão no país. A reação mais ferrenha à pauta conservadora vinha da União Estudantil Socialista Alemã, cujo líder era o carismático sociólogo Rudi Dutschke. Na Conversa sobre o futuro, com editores da Kursbuch (em agosto de 68), Dutschke se posiciona contra a energia nuclear e pela proteção do meio ambiente, contra a Guerra do Vietnã, contra relações oficiais com nações que violavam direitos humanos e em defesa dos direitos da mulher. Importa sublinhar o quanto essa paleta de exigências soava absolutamente provocativa em meados dos anos 1960! Em junho de 1967 o Xá Reza Pahlevi e sua esposa Farah Diba fizeram uma visita de Estado na Alemanha. Ao serem aguardados para o espetáculo A flauta mágica, de Mozart, cerca de dois mil manifestantes se concentraram em frente à Ópera de Berlim, a fim de protestar contra práticas injustas de perseguições políticas no Irã. A polícia e os agentes iranianos dispersaram os estudantes com violência e, em meio ao tumulto, o policial Karl-Heiz Kurras atirou e matou o jovem Benno Ohnesorg. O incidente acirrou as confrontações que se contrapunham igualmente à imprensa sensacionalista do grupo editorial Springer (tabloide Bild), e as agitações do movimento de 68 na Alemanha se estenderam até meados de 1969.

Aliás, a mídia hegemônica, sobretudo a televisão repressora da mobilização social, é objeto dos estudos de comunicação que Enzensberger elabora no artigo Módulos para uma teoria da mídia, em março de 1970:

Quando digo mobilizar, quero dizer mobilizar. Num país que vivenciou o fascismo (e o stalinismo) em primeira mão, talvez ainda seja necessário ou seja necessário continuar explicando o que isso significa, ou seja, tornar os indivíduos mais móveis do que são. Ágeis como dançarinos, rápidos como jogadores de futebol, surpreendentes como guerrilheiros. Quem vê as massas como meros objetos da política não consegue mobilizá-las. Quer afastá-las para um lado e para o outro. Um pacote não é móvel, é empurrado para a frente e para trás. Marchas, colunas, desfiles imobilizam os indivíduos. A propaganda, que não promove autonomia, senão paralisa, segue padrão similar. Leva à despolitização.

Em abordagem afinada com a Escola de Frankfurt, “comportamento crítico orientado para a emancipação” (segundo Marcos Nobre em A teoria crítica), as ponderações de Enzensberger se ressentem da indústria cultural predominando sobre as consciências e emudecendo. Ao se reportar à dialética de Brecht na Teoria do rádio e na peça didática Voo sobre o oceano, ele lança o desafio de um processo de comunicação em que os ouvintes eventualmente virem protagonistas.

Os últimos números da Kursbuch, todavia, foram palco de uma controvérsia entre Enzensberger e o escritor Peter Weiß, ambos engajados na luta solidária contra a exploração e a expropriação nos países pobres. Suas opiniões se distinguiam. Enquanto o Vietnã era para o dramaturgo Weiß um modelo de luta pela libertação contra o imperialismo, Enzensberger via Cuba como o exemplo paradigmático de revolução. A querela se estendeu pelas páginas de vários números, cada um a todo custo fazendo valer seu ponto de vista. Essas picuinhas seriam risíveis, se o assunto não fosse tão grave. Inspiraram as respectivas peças de teatro: um escreveu Discurso Viet Nam, em 1967, e o outro escreveu O interrogatório de Havana, em 1970.

Destinatário desconhecido: uma antologia poética (1957-2023)
Hans Magnus Enzensberger
Trad.: Daniel Arelli
Círculo de Poemas
224 págs.
Hans Magnus Enzensberger
Nasceu em Kaufbeuren (Alemanha), em 1929. Estreou com Verteidigung der Wölfe [Defesa dos lobos], em 1957, e logo se firmou como um dos maiores nomes da poesia alemã do pós-guerra. Atuou como ensaísta, tradutor, editor e professor. Recebeu, entre diversos prêmios, o Büchner e o Príncipe das Astúrias. No Brasil, sua obra ensaística pode ser lida em Ziguezague (Imago, 2003) e Tumulto (Todavia, 2019), entre outros livros. Morreu em 2022.
Maria Aparecida Barbosa

Professora de Literatura e tradutora do alemão.

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