Veio da cozinha um barulho de panela. 3h34. A insônia costuma aguçar meus ouvidos. Fosse de copo batendo na pia, porta de geladeira, jarra despejando água, era a sede do pai. Nem sempre ele se lembra da moringa ao lado da cama, que esvazia e reenche todas as noites antes de ir deitar, “tenho sede, filho, muita sede, uma boca seca de quem vai morrer afogado”. Sempre deixo pra lá essa de afogado ter a boca seca.
Antes da panela, eu já tinha sacado a porta do quarto rangendo, os passos do velho no corredor, seu movimento atordoado pela cozinha, a portinhola do último armário batendo na parede. Tirou a panela de lá de dentro, levou pra mesa e foi arrastando os chinelos até a despensa.
Levantei me atrapalhando nas cobertas, errando os dedos na havaianas; sem acender a luz, deixei o quarto. Me deparei com o pai tentando abrir um saco de feijão; puxava o plástico com dificuldade, até que enfiou o indicador e conseguiu um furo, que alargou com a ajuda da outra mão. Só então ele me percebeu na cozinha.
— Acordado, filho? É cedo.
— O que o senhor tá fazendo?
— Tá com sede?
— Não. Ouvi barulho.
Foi se aproximando, fechou a porta atrás de mim. — Senta aí, Júnior. — Apontou uma cadeira e afastou a da cabeceira pra ele. Sentamos.
Despejou parte do pacote na mesa.
— Vai escolher feijão a essa hora?
Esticou o braço, apanhou a panela, e apoiou em cima das pernas.
— Estou adiantando pra sua mãe. Quero deixar de molho pra cozinhar logo cedo.
Passou a mão sobre o montinho, separando os grãos, e começou a empurrar um a um para dentro da panela, plin, plin, plin. Batia o dedo em cima de cada feijão, como se contasse, depois vinha o som ritmado, plin, plin, plin. Aquilo era meio hipnótico, foi me dando sono.
Esparramou mais um pouco sobre a mesa.
— Hoje a gente chegou tarde, ela não teve tempo e nem cabeça pra nada.
— Onde vocês foram?
Catou uma pedrinha minúscula e a rodeou entre os dedos antes de atirar na direção da pia. Errou, a bolinha preta quicou duas vezes e parou.
— Sua mãe é uma mulher boa, e sempre foi uma boa mãe pra você também.
— Sempre, pai. Tirando aquela vez que ela me esqueceu na escola, lembra? O senhor disse que chegou em casa de noite e perguntou, “cadê o menino, Rosa?, cadê o menino?”. Lembra?
Soltei uma risada boba. Ele continuou sério.
— Não, Júnior, quem te esqueceu naquele dia fui eu.
Plin, plin, plin, plin.
Pensei em insistir que era ela quem me buscava na escola; que ela tinha ficado muito arrependida, “desculpa, filho, desculpa sua mãe”; que ele tinha ido me resgatar enquanto ela esperava em casa, chorando; que quando chegamos ele gritou, “eu não sei onde você estava com a cabeça pra esquecer o moleque desse jeito”. Mas deixei pra lá.
Alisou alguns grãos. — Ela sempre prepara tão bem esse feijãozinho pra gente, né, filho? — Parou os olhos em mim. Tive vontade de rir bobo de novo.
— Acho que ela salga demais a comida, deve ser ruim isso pra pressão. Vai ver tá todo mundo aqui em casa com pressão alta. — Quis ajudar, apanhei o saco e despejei meu próprio montinho. — É até bom fazer uns exames. Vai ver, essa boca seca de afogado que o senhor tem é da pressão.
O pai baixou mais a cabeça. Com a borda da mão, empurrou pra dentro da panela um punhadinho, nem viu se tinha pedra.
Fiquei arrependido de ter falado do sal, de ter reclamado da comida dela, de ter tocado em assunto de doença.
— Os que têm só metade, é pra jogar fora?
Esperei uma resposta, mas ele parecia esquecido dos feijões; encarava a parede.
Com a mão cheia, inclinei pro lado dele e despejei os inteiros na panela. — E o Tobi, pai?
Ele deixou a parede e se voltou pro corredor. — Tá no quarto, não larga a sua mãe faz alguns dias. Deve ter subido na cama.
Achei uma pedra. — A mãe vai sentir falta quando ele morrer, tá velhinho.
O pai apoiou a panela na mesa. — Estamos. — Deixou a cadeira, foi até a geladeira, pegou a jarra e despejou água no copo. Devia ser a boca de afogado.