Santana Quemo-Quemo

Conto de Antonio Carlos Viana
Antonio Carlos Viana, autor de “Aberto está o inferno”
01/04/2008

Quando os carros chegaram, minha mãe fazia uma galinha que meu irmão tinha arranjado naquela manhã mesmo, num quintal longe dali. O pirão ia ficar gostoso. A gente já sabia que os carrões iam chegar, a notícia corria desde o começo da semana e já era sexta-feira. As mulheres já se descabelavam, berrando que não tinham para onde ir. Pareciam ter enlouquecido todas de uma vez. Num minuto, era um monte de traste velho do lado de fora dos barracos: lastro de cama, um monte de colchonete enrodilhado, botijão de gás, e lata, muita lata, onde à noite a gente cagava e mijava. Quando amanhecia, jogava tudo no riacho.

Os homens nem quiseram conversa. Em vez da polícia, trouxeram coisa melhor: a banda de música dos bombeiros. Acho que pra dizer que eram da paz e também nos distrairiam da desgraça que é sair com os trens nas costas para despejar num outro canto. A banda se posicionou, um homem deu sinal, ela começou a tocar. Depois veio o trator, alucinado, abrindo caminho. O bicho roncava feito fera partindo com fome pra cima da gente. Não dava nem mais para ouvir a música, uma de Roberto Carlos, num ritmo bem animado. Nosso barraco era o primeiro da fila. Ia se esfrangalhar que nem cavaco chinês. Os ratos corriam por tudo que era canto. Foi nessa hora que vimos nossa mãe sair daquele jeito dela pela portinha de nada, os cabelos de assombração, os peitos mal-amanhados numa tira de pano que fazia as vezes de sutiã. Pendiam feito trouxa desaprumada.

Ela foi pra cima do homem, um de camisa azul de manga comprida e gravata cheia de borboletinha. Ele, na maior calma: “Área de preservação ambiental, a ordem é derrubar tudo”. E todo sério, com um papel na mão: “Aqui não pode fazer barraco. Deviam saber”. E pra onde a gente ia? “Se virem, assim como vieram pra cá, se virem”, falou o homem ajeitando a gravata, borboletinha de tudo o que era cor. Enquanto isso, o trator ciscava atrás dele, só esperando a ordem, parecia um touro brabo.

E veio, bem em cima do nosso barraco. Ah meu Deus, a panela da galinha que deu tanto trabalho a meu irmão pegar ia virar com tudo, adeus pirão, adeus cheiro bom, coisa tão rara um cheiro assim no meio daquela merda toda. De repente, o trator parou. Até pensamos que o motorista ia fazer como aquele da televisão, que não teve coragem de derrubar a casa que tinham mandado. Depois foi que vimos que ele parou, assim como os homens de manga comprida e gravata, pra apreciar minha mãe dançando, no começo devagarinho, depois como se estivesse com a pombagira.

Ela começou cantando baixinho: “Você conhece Santana Quemo-Quemo, Santana Quemo-Quemo, Santana Quemo-Quemo?” E repetia a mesma lengalenga, a voz subindo, até atingir um tom que não era dela. Não sei onde ela foi achar aquela letra mais doida que não saía do lugar. Todo mundo pensou que ela estava só ganhando tempo, fazendo graça, ela sempre foi muito engraçada, pros homens desistirem. Quem disse? O trator retomou toda sua força e veio decisivo em cima do barraco. De tão frágil, nem precisou tocar nas paredes. Só o ronco fez tudo vir abaixo.

O homem das borboletinhas nem tuge nem muge, parecia que estava vendo rasgar pacote de biscoito. A banda continuava tocando, a gente nem ouvia mais a música direito, só ouvia o trator. As casinhas eram tudo igual, de papelão e pedaço de madeira velha, era só crec crec, crec, crec, e os homens ainda conversavam entre si, distraídos. Sorriam, os endemoniados. Pra completar a desgraça, tinha chovido a noite toda e a lama havia tomado conta de tudo, e minha mãe sambando e cantando cada vez mais alto, pé no barro, capaz de escorregar, parecia tomada mesmo por uma coisa ruim. Era uma forma de distrair a dor, pensei, porque não tinha jeito mesmo, já derrubaram e a gente que se danasse.

Mas a vida também tem suas alegrias. Quando tudo estava no chão, vimos nossa irmã, do outro lado do riacho, segurando pelas alças a panela da galinha, que a gente comeu, feliz, debaixo da amendoeira, quando os homens foram embora, já tudo derrubado. E nossa mãe não parava mais de cantar “Santana Quemo-Quemo, Santana Quemo-Quemo, Santana Quemo-Quemo”, os peitos já fora da tira, a saia levantada, aparecendo tudo.

Antonio Carlos Viana

É escritor. Autor de, entre outros, Cine privé.

Rascunho